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Foto do escritorGabriella Ferreira

Análise | A Substância: Quando o horror corporal se torna uma metáfora para o auto ódio feminino

Longa de Coralie Fargeat é didático ao tentar explicar como a pressão estética e o etarismo levam mulheres a situações extremas

Foto: Divulgação


Ozempic, Monjauro, Lipo Lad, Botox…Duvido que você nunca tenha ouvido falar em um desses medicamentos ou procedimentos, especialmente sendo usados por mulheres que querem se tornar mais magras, menos flácidas, mais esculturais e mais bonitas para um padrão estético cada vez mais inalcançável. Em uma versão resumida, o fio condutor de A Substância, filme vencedor de melhor roteiro em Cannes neste ano, traz uma estrela que atingiu seu ápice há anos atrás e que é demitida do programa fitness que apresenta por estar velha demais. Por conta disso, ela ingere uma substância que a torna uma versão perfeita de si mesma: jovem, bonita e menos flácida, tudo que a sociedade não enxergava mais nela. 


Utilizando-se do horror corporal, um subgênero que se caracteriza por explorar transformações e mutilações grotescas do corpo humano, a diretora e roteirista Coralie Fargeat traz pro público reflexões acerca de uma pressão estética que descarta mulheres ao desuso quando não é atrativo o suficiente para os homens da sala. Obviamente essa temática é exposta com exaustão por muitas mulheres, das que trabalham com arte e cinema até as que trabalham em profissões consideradas mais comuns, todas sentem que ao chegarem em determinada etapa da vida são colocadas em uma caixinha e veem sua imagem sendo atrelada à uma terceira idade forçada ou escutam comentários que agem como bem-intencionados que sugerem procedimentos estéticos que tentam diminuir ou estagnar um envelhecimento que chega para todos nós e que, repetitivamente, a balança sempre pesa mais para o lado da mulher. 


E A Substância aponta muito bem essas pressões estéticas em cima da personagem Elisabeth Sparkle (interpretada pela Demi Moore) que, inclusive, reflete-se bem na vida e carreira da própria Demi. Ela, considerada um ícone dos anos 90 e uma das atrizes mais bem pagas da época, viu os papeis oferecidos despencarem conforme sua idade avançava. Era como se o seu talento evaporasse junto com a sua juventude e em sua cena de abertura, o filme escancara isso com uma metáfora didática: ambientado em Los Angeles, o longa começa com uma vista aérea da Calçada da Fama de Hollywood, onde uma nova estrela está sendo instalada. Mas com o tempo, aquela estrela que homenageia a atriz Elisabeth Sparkle, racha e é danificada. É pisoteada e ignorada. Um homem passa por ela, deixa cair o hambúrguer e a estrela fica suja de ketchup. Ela não tem mais valor, não vale mais nada para o público e para a indústria. E ela é facilmente substituível. 


Utilizando-se agora da substância, a personagem de Elisabeth se vê como Sue (interpretada por Margaret Qualley), uma jovem que é exatamente a substituta perfeita que os homens precisam. Sue logo vira protagonista do seu antigo programa e se torna amada, idolatrada e idealizada por ser o padrão quase inalcançável que todas as mulheres desejam e que os homens querem ter. Para a trama do filme, é necessário existir um ponto de tensão e ruptura que, neste caso, é o de que o funcionamento da substância só se torna completo se houver uma troca entre esses corpos: sete dias em um corpo perfeito e outros sete dias em seu corpo normal, tal como um revezamento. 


É nesse ponto de ruptura que a trama também entra em uma questão muito forte dentro  do espectro feminino. As duas versões não conseguem coexistir em harmonia, mesmo sendo a mesma pessoa, cada versão se odeia, em um sintoma muito claro de uma imposição patriarcal e capitalista. Elisabeth odeia Sue por ser tudo o que ela mais queria e por receber a atenção que ela merecia apenas por ser bonita. Sue odeia Elisabeth pelo descuido com a perfeição, por passar horas na frente da TV, por comer o que teoricamente ela não deveria. Esse ódio (ou auto ódio) consome a personagem nas suas duas versões, que se destroem em um momento catártico com a frase “por favor, me faça bonita de novo”.


Em outro momento bem emblemático na história, Elisabeth se arruma para um encontro com um ex-colega de escola enquanto acha defeitos dela mesma em frente ao espelho, em uma visível comparação com Sue. Ela rejeita tudo que vê, tentando disfarçar suas imperfeições com maquiagem e esconder o decote por não se achar bonita o suficiente na sua idade para usar. Quantas de nós já não nos sentimos assim? É sintomático. Fomos criadas em uma sociedade que rejeita a diversidade dos nossos corpos e que cria constantes tendências que parecem cada vez mais impossíveis de serem seguidas. 


A Substância é um filme inteiro sobre uma mulher conscientemente fazendo mal pra si mesma. Diferente de longas que buscam passar uma mensagem conciliadora, aqui a história faz como a vida real e nos esmaga (no sentido, talvez, mais literal da palavra) para um paradoxo de fascínio e desespero em seu ato final. Para mim, o grande horror de A Substância não é o gore explícito ou as cenas que abusam do sangue falso. O verdadeiro filme de terror é ser uma mulher fora do padrão e, mesmo com uma boa autoestima, pensar: se me oferecessem a substância eu provavelmente tomaria.

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