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Foto do escritorVinicius Oliveira

Análise | 'Coringa: Delírio a Dois' e o exercício da metaficção no cinema

Ou como ter a coragem de desconstruir um grande sucesso

Foto: Divulgação/ Warner Bros. Pictures


O TEXTO A SEGUIR CONTÉM SPOILERS


Mais um Coringa, mais um oceano de polêmicas. Desta vez, o burburinho do filme é menos em torno dos seus efeitos externos (nada de “vai morrer gente por causa desse filme” dessa vez) e mais sobre suas qualidades, ou a falta delas: ritmo lento, performances musicais mal encenadas — ou a mera presença delas, o pesadelo dos haters do gênero —, participação de Lady Gaga menor do que o esperado, tom e proposta completamente diferentes do antecessor... A lista é longa e não pretendo me deter sobre esses pontos — embora parte deles certamente vá aparecer de um jeito ou de outro. Também não é minha intenção escrever uma nova crítica, visto o ótimo trabalho já feito aqui no site pelo meu colega e amigo Shelter (e mesmo discordando da nota dele, jamais seria capaz de entregar uma canetada como “o palhaço dessa vez foi o público”).


Em meio à enxurrada de críticas negativas que Delírio a Dois vem recebendo, um comentário me chamou a atenção. Segundo Deivid R. Purificação (o Juliette cinéfilo do finado Twitter / Blue Sky), o filme era um Matrix Ressurrections se fosse dirigido pelo cinegrafista do Raul Gil. Ora, eu adoro Ressurrections e a maneira como ele critica as apropriações (absurdas) feitas pelos fãs da franquia, em especial os incels. Ao comentário de Deivid se seguiram críticas e comentários de outros colegas e amigos cujas opiniões valorizo fortemente (mesmo quando discordo), as quais me deixaram curioso sobre o que exatamente encontraria neste filme.


Aqui um adendo: como acontece com muitos filmes que caem na polarização, eu gosto do primeiro Coringa, mas acho que ele está muito, muito longe de ser uma obra-prima. É um filme que, a despeito das reações extremas que causou lá em 2019, definitivamente não te faz sentir indiferente quanto a ele. Meu principal problema com a obra, porém, era a maneira como tratava o seu protagonista Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) como uma espécie de página em branco, sobre o qual os demais personagens fazem suas próprias projeções, e por extensão o público era convidado a fazer o mesmo. Assim, se tratava de um filme covardemente isento, o que nos ajuda a entender como se suscitou interpretações e apropriações tão divergentes nestes últimos cinco anos.


O que me leva ao ponto principal do texto, de que Delírio a Dois nasce de uma reflexão a respeito das muitas maneiras pelas quais Fleck/Coringa foi apropriado (em especial por incels e a extrema-direita) como um símbolo de uma revolta vazia, de uma revolução contra “tudo que está aí”. O filme se propõe a oferecer uma resposta e também a uma reapropriação sobre como o personagem deveria ser lido, e o faz através do exercício da metaficção, elaborando uma trama ficcional que se liga às discussões extrafílmicas e o cenário gerado no intervalo entre ele e seu antecessor.


Não se trata de um exercício sutil — afinal, os dois filmes não são conhecidos pela sutileza —, mas me surpreende a maneira como esses elementos metaficcionais parecem ter passado em grande parte despercebidos para o público que vem detonando o filme nas redes sociais nos últimos dias. Ou talvez não tenham sido tão despercebidos assim, já que uma das principais críticas que vi foi justamente a de que o filme “destrói” a proposta do primeiro, ou ao menos se distancia completamente. Mas e se isso tiver sido proposital?


Desde a sequência animada que vemos em seus primeiros minutos, Delírio a Dois parece se ancorar na ideia central de um embate (ou no mínimo) uma reflexão sobre a aparente personalidade fraturada de Fleck/Coringa. Quem dos dois cometeu os crimes, se é que de fato há dois? O filme dança em torno dessa discussão, mas nunca se propõe a aprofundá-la porque, de fato, a resposta já nos é dada muito cedo. Na verdade, vou além para dizer que a resposta já estava dada no primeiro Coringa e, nesse aspecto ao menos, a sequência parece respeitá-la, saindo de um lugar de isenção e covardia para enfim assumir um posicionamento sobre o que pensa a respeito de seu protagonista: que ele é um homem patético, trágico e, sim, também monstruoso, mas um só, e responsável pelos seus atos violentos.


No entanto, isso é o suficiente para reverter toda a comoção dos últimos anos, as apropriações inadequadas, os fantasiados de Coringa em protestos políticos e tudo o mais que foi atrelado ao primeiro longa? Afinal de contas, a arte vai além do que um realizador pensa a respeito de sua própria obra: ela nunca se conforma em significados fechados, e incontáveis vezes interpretações e visões entre criadores e público divergem drasticamente — basta ver a já referida Matrix, ou os casos de Clube da Luta e Tropa de Elite.


A solução de Todd Philips, então, é trazer esse público para dentro do próprio filme, e isso é feito justamente através da figura da Harleen Quinzel de Lady Gaga. Sim, ela é bem menos importante do que todo o marketing faz parecer, e solta o gogó bem menos vezes, mas quando li que a personagem é justamente a personificação da relação bastante doentia que tantos fãs criaram com o Coringa de Phoenix e o primeiro filme em si, senti que uma chave virou na minha percepção. O ponto-chave reside justamente quando, no último ato, ela abandona Fleck ao vê-lo confessar seus crimes e admitir que “nunca houve um Coringa”, afirmando depois para ele que era melhor que vivessem na fantasia, mas ele escolheu negar isso. Não está muito longe do desapontamento de muitos fãs do longa anterior com este, não é?


Ao trazer elementos do drama de tribunal (que são as porções mais fortes do filme, a meu ver), Philips não se preocupa apenas em julgar Coringa, o personagem, mas o seu próprio filme e o legado atrelado a ele. Novamente vemos os mais diversos esforços de outros personagens em atribuir diversos significados às ações de Fleck, que é relegado a uma posição ainda mais passiva do que nunca, até o momento em que assume as rédeas do seu próprio julgamento, buscando se auto-defender. É seu momento de brilhar, de assumir as rédeas da sua própria vida e sobretudo da narrativa acerca de si mesmo, para enfim mostrar às pessoas o que ele é (ou pensa que é). Mas é tarde demais: o momento de brilhar já passou, a(s) narrativa(s) já estão consolidadas e nem ele (nem Philips) possuem força para mudá-las. O que resta depois daí?


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