Análise | Onde estão os atores nordestinos nas obras sobre cangaço?
- Vinicius Oliveira
- 4 de abr.
- 5 min de leitura
Um histórico de apagamentos em obras que lidam com um fenômeno inerente à região Nordeste.

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Estreou nesta sexta-feira (04) a série do Disney+ Maria e o Cangaço, que foca na vida de Maria Bonita (Ísis Valverde), em seus anos no bando de Lampião (Júlio Andrade). A série, que teve seu lançamento oficial em Recife e foi gravada em Cabeceiras, no sertão da Paraíba, se destaca pelos números do seu elenco: são 56 personagens, dos quais 52 são interpretados por atores e atrizes nordestinos. Ainda assim, é notório que os dois papéis principais da obra serão estrelados por uma mineira e um gaúcho, respectivamente.
Faço aqui um adendo: esta não é uma crítica tampouco um ataque aos méritos de Ísis e Júlio, dois artistas celebrados que há muito já comprovaram a força de seus talentos. O intuito é justamente discutir uma problemática que não se inicia nem se encerra em Maria e o Cangaço, mas que vem acompanhando o audiovisual brasileiro já há quase um século. É ótimo ver que o elenco da série é majoritariamente nordestino, mas seria tão difícil assim achar um ator e atriz nordestinos para interpretar Maria Bonita e Lampião?
Ao contrário do que estes parágrafos iniciais possam dar a entender, não acredito que a origem de um artista é o único critério que vai determinar a qualidade da obra caso ela seja produzida num contexto geográfico; poderia até extrapolar esse ponto para outras discussões (artistas héteros interpretando personagens LGBTQIA+, homens dirigindo filmes protagonizados por mulheres, protagonistas negros(as) dirigidos por pessoas brancas, etc.), mas vou me ater a ele em específico. Basta ver figuras consagradas como Matheus Nachtergale, um dos nossos grandes atores e que já apareceu em tantas produções ambientadas no Nordeste (O Auto da Compadecida, Amarelo Manga, Narradores de Javé, Mais Pesado É o Céu, etc.) que é fácil esquecer que ele nasceu em São Paulo. Recentemente tivemos o longa cearense O Melhor Amigo (2025), que dentre os elogios que recebeu estava o cuidadoso trabalho com os sotaques dos protagonistas interpretados por Vinícius Teixeira (carioca) e Gabriel Fuentes (mineiro).
No entanto, quando se vê uma longa trajetória de obras centradas no movimento do cangaço que preferem privilegiar atores sudestinos/sulistas para interpretar essas figuras históricas, pode se constatar um problema em nosso audiovisual. Embora o Nordeste seja muito vasto e plural para ser limitado apenas ao signo do cangaço (assim como à seca, à pobreza, ao messianismo, aos sotaques estereotipados, etc), trata-se de um movimento inerente à região, que não encontrou paralelo em outras partes do país justamente porque nasceu, se desenvolveu e morreu nas condições aqui apresentadas.
O pesquisador cearense Marcelo Dídimo, em seu livro O Cangaço no Cinema Brasileiro (2010), destaca que o cangaço fascina cineastas e espectadores Brasil afora desde pelo menos a década de 1920, quando o movimento ainda era ativo e figuras como Lampião e Corisco ainda eram vivos. Em um extenso trabalho de catalogação, ele identificou até aquele período um total de 48 filmes sobre o tema, entre curtas, médias e longas-metragens, documentário ou ficção. Para Dídimo, esses filmes não apenas poderiam ser alocados em um gênero próprio – o nordestern, em alusão ao western/faroeste, mas com elementos tipicamente brasileiros e nordestinos – mas também se gerariam no entrecruzamento com outros gêneros, como as comédias, (porno)chanchadas, o cinema documental e etc.

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Quando falamos da representação do cangaço no cinema brasileiro, é inevitável não pensar em algumas obras específicas, a começar por O Cangaceiro (1953), de Lima Barreto. Produzido pela Companhia Vera Cruz e um dos primeiros longas nacionais a ganhar projeção internacional (vencendo dois prêmios em Cannes), o filme se baseava livremente na história de Lampião para abordar o triângulo amoroso formado entre os cangaceiros Teodoro (Alberto Ruschel) e Galdino (Milton Ribeiro) e a professora Olívia (Marisa Prado). No entanto, não só o trio principal era composto por sudestinos (Prado e Ribeiro) e um sulista (Ruschel) – além do próprio Barreto ser paulista –, como o filme foi gravado no interior de São Paulo.
Na década seguinte, foi a vez do Cinema Novo voltar seus olhos para o Nordeste e para o cangaço, como evidenciado pelos trabalhos de Glauber Rocha em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) e O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (1969). No entanto, embora Glauber fosse baiano e ambos os filmes tenham sido rodados no interior da Bahia, vale apontar que o ator Maurício do Valle, que interpretou o personagem Antônio das Mortes em ambos os filmes, era carioca. Ainda que em Deus e o Diabo... tenhamos a figura de Corisco interpretada pelo baiano Othon Bastos, pode se ver que mesmo em casos com um diretor e ambientação legitimamente nordestinos não se teria uma garantia por um elenco majoritariamente nordestino.
A partir dos anos 1990, o movimento da Retomada vai ser marcado pelo advento de alguns estados nordestinos (em especial Pernambuco) como novos polos de produção do audiovisual nacional para além do eixo Rio-São Paulo. De acordo com a pesquisadora Ângela Prysthon, esse cinema mainstream do estado, mesmo que não deixasse de ser realista, buscou afirmar uma espécie de sotaque fílmico através da caricatura, do estranhamento, do excesso de caráter local, acentuando-se o folclórico na mesma medida que se aderia a um discurso modernizante e tecnológico. Com isso, o espaço urbano de Recife (e outras capitais nordestinas) passa também a ser uma nova fonte de ambientação para estas obras, desviando-se da costumeira abordagem de retratar o Nordeste a partir do sertão e dos seus espaços interioranos.
Isso não quer dizer, porém, que a ênfase no regionalismo (e por extensão no cangaço) não estivesse presente no cinema da Retomada. Ela pode ser encontrada em obras como a já citada O Auto da Compadecida (2000), que contava com o pernambucano Marco Nanini no papel do cangaceiro Severino de Aracaju – mas também com Enrique Díaz, peruano radicado brasileiro, como seu braço direito. Falando em Díaz, seu irmão Chico deu vida a Corisco no longa cearense Corisco e Dadá (1996), com o papel de sua companheira cabendo à paraense Dira Paes. Temos também Baile Perfumado (1996), do pernambucano Lírio Ferreira e do paraibano Paulo Caldas, que foi estrelado pelo também paraibano Luis Carlos Vasconcelos como Lampião... e pelo paulista Duda Mamberti como o mascate Benjamin Abrahão.
Mais recentemente tivemos a série original do Prime Video Cangaço Novo (2023), que, assim como Bacurau (2019) visa atualizar a figura do cangaceiro para os tempos contemporâneos (ou até futuros, no caso de Bacurau). Embora ambas as obras se destaquem por elencos majoritariamente nordestinos (ainda que no filme de Kleber Mendonça Filho tenhamos a paranaense Sônia Braga e a mineira Bárbara Colen entre os papéis principais), aqui o questionamento é de outra ordem: é possível invocar a figura do cangaceiro, tão historicamente demarcada? Atualizá-la sem, no entanto, desprovê-la dos contextos que regeram o início, desenvolvimento e fim do movimento?
O que nos traz de volta a Maria e o Cangaço, que representa um novo capítulo numa discussão longa e que não possui respostas fáceis. É inegável que o cangaço exerce fascínio, seja numa análise mais estritamente fílmica – a maioria esmagadora desses filmes citados são ótimos, senão obras-primas do nosso cinema – ou histórica, dadas todas as marcas que deixaram no Nordeste. Em meio a todas as suas nuances (Heróis? Vilões? Selvagens? Vigilantes do povo ou capachos dos coronéis?), uma coisa é certa: os cangaceiros são intrinsecamente nordestinos. E não me parece que o audiovisual nacional ainda compreendeu isso por completo.
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