Na era do streaming, é natural que haja mudanças no modo de fazer televisão, mas não quer dizer que elas sejam boas
Foto: Divulgação/ Oxente, Pipoca?
Primeiramente, vamos definir o que é o formato episódico, como ele vai além do tradicional “caso do dia” e como ele é valorizado pelo modelo semanal. Antigamente, era a única forma possível de contar uma história na televisão, com os chamados ‘procedurais’ dominando o cenário, em que um episódio não dependia diretamente do outro, com algumas exceções. Ainda assim, havia desenvolvimento dos personagens e de suas relações, além do apego do público, que acompanhava semanalmente. Na TV aberta estadunidense, os exemplos mais claros de que um episódio precisava do outro são Twin Peaks nos anos 90 e Lost nos anos 2000. No entanto, isso não significa que elas não fossem episódicas. A cada hora semanal, arcos começavam e se concluíam, mesmo que alguns elementos fossem inseridos para futuros episódios. A HBO, na TV a cabo, mantém essa tradição até os dias de hoje. David Chase, criador de Família Soprano, mencionou em um documentário recente sobre ele e a série que, no início de cada temporada, ele desenhava 13 linhas para representar os 13 episódios e definia o que cada personagem faria em cada um deles. Ou seja, tramas começavam e terminavam em cada episódio, ligadas ao arco central ou não, mas sempre contribuindo para o desenvolvimento dos personagens. Isso é um exemplo claro de como o formato episódico é vasto e flexível.
Quando a Netflix começou a produzir séries dramáticas, inovou ao liberar todos os episódios de uma vez, ganhando prestígio com a estreia de House of Cards e, pouco depois, Orange is the New Black em 2013, chegando a ser chamada de “nova HBO” — uma antecipação que se mostrou precipitada com o tempo. Ambas as séries eram, de fato, de alta qualidade, especialmente em suas primeiras temporadas, mas o formato era diferente, justamente por lançar todos os episódios de uma vez. Era como se eles perdessem a importância individual, sendo valorizados apenas como parte de um todo. Elementos que começavam no primeiro episódio só seriam resolvidos no quarto, ou em muitos casos, eram prolongados até os episódios finais. Esse modelo funcionou bem nas temporadas iniciais, pois a escrita era sólida, e ao final de cada temporada, havia uma sensação de recompensa. Contudo, com o passar dos anos, o formato tornou-se cansativo. O famigerado algoritmo parecia forçar o público a maratonar, e os episódios eram construídos com esse propósito. A intenção não era mais criar episódios de qualidade individual, mas sim ganchos eficientes que levassem ao próximo. Isso parece ser uma regra, embora a Netflix ainda tenha boas produções, como as minisséries Ripley e Bebê Rena, ambas vencedoras no Emmy deste ano.
Com Stranger Things, há quase uma mistura de formatos. Um exemplo é o episódio ‘A Irmã Perdida’, da 2ª temporada, notoriamente odiado. Ele era uma tentativa de spin-off, que felizmente nunca saiu do papel por ser realmente ruim. Embora tenha sido chamado de filler, prefiro evitar o termo, categorizando episódios como bons ou ruins, o que pode ser complicado quando falamos da Netflix, especialmente agora que ela separa as temporadas em partes, prática que pouco influencia o enredo. Separar uma temporada em duas partes, como era comum na TV a cabo por razões contratuais ou de premiação, em séries como Família Soprano, Breaking Bad e Better Call Saul, faz sentido. Mas separar uma temporada de Emily em Paris ou Outer Banks em duas partes com apenas um mês de intervalo? Isso talvez seja um teste para um futuro com episódios semanais, ou simplesmente uma forma de manter a série em discussão por mais algumas semanas. Outros streamings, como Prime Video, Apple TV+ e Disney+, fazem uma mistura, lançando dois ou três episódios de uma vez e, depois, seguindo com lançamentos semanais. A Disney, em particular, utiliza esse modelo com três episódios quase funcionando como um piloto, como no caso de Andor, por exemplo. Curiosamente, a série melhorou consideravelmente quando passou a ser exibida semanalmente.
Muitas pessoas não gostam de esperar uma semana para ver um episódio e preferem aguardar que a temporada inteira seja lançada antes de começar a assistir, e isso é compreensível. No entanto, isso reflete o imediatismo que vivemos hoje, em que as pessoas consomem uma infinidade de produções e se preocupam apenas com o final, sem aproveitar o início ou o meio, mesmo quando são incrivelmente bem feitos e com poucos episódios “enrolando”. Se me disserem que o final de uma série de oito temporadas é horrível, mas várias temporadas são ótimas, eu com certeza assistiria. Historicamente, séries são feitas para que cada episódio seja apreciado. Claro que há episódios bons e ruins em qualquer produção, mas existem exemplos de episódios brilhantes que não se conectam necessariamente à trama principal, como ‘Pine Barrens’ de Família Soprano, ‘Tricia Tanaka está morta’ de Lost ou ‘A Mosca’, o polêmico episódio da mosca de Breaking Bad, que muitos desavisados sugerem pular. Esses episódios são maravilhosamente escritos, divertidos e desenvolvem profundamente os personagens focados. Como dizer que não são importantes?
A Netflix mudou até a forma de produzir televisão, aprovando temporadas inteiras de uma vez, o que levou ao absurdo de chamar uma série de “filme de 10 horas”. Série é série e filme é filme. Cada mídia deve ser tratada de maneira diferente, pois são fundamentalmente distintas. Tradicionalmente, para que um piloto fosse ao ar, o canal aprovava o roteiro, encomendava a produção do piloto e, se este agradava aos executivos, encomendavam mais episódios. Caso contrário, era descartado. Como esse processo se perdeu, especialmente na Netflix, é comum começar uma série e ela só mostrar a que veio lá pela terceira ou quarta hora, mas desde o início, os ganchos já levam diretamente ao próximo episódio. O projeto, desde a base, é diferente. Essa ideia de “filme de 10 horas” costuma vir de algum diretor de cinema com preconceito contra a televisão e é perpetuada por pessoas que enxergam a TV como uma arte inferior. Se quer fazer um filme de 10 horas, faça um filme. Se quer fazer uma minissérie de 10 horas, faça 10 episódios em que cada hora seja valorizada. E não venha com o argumento de que “o final é espetacular”, pois o início e o meio também deveriam ser.
O formato episódico, semanal e até mais longo, permite que os roteiristas exerçam sua criatividade. Mesmo tendo mencionado muitas séries antigas; atualmente, temos excelentes exemplos, como Industry (HBO), que dedicou um episódio inteiro a um personagem secundário e entregou um dos melhores episódios do ano. Algo que dificilmente seria feito na Netflix. É uma série que sabe aproveitar o formato, o arco principal da temporada e o desenvolvimento dos personagens, com começo, meio e fim em cada episódio, mas ainda assim deixando terreno preparado para mais. Outro exemplo são as ótimas Slow Horses (Apple TV+) e My Brilliant Friend (HBO). O Urso, parceria do FX com o Hulu, lançou sua 3ª temporada completa de uma vez. Embora os episódios focados em personagens individuais sejam brilhantes, a trama central da temporada parece girar em círculos, resultando em uma boa temporada, mas abaixo das anteriores. A Netflix não inventou a maratona, muitos já faziam isso com DVDs, mas quando se muda a forma de criar séries para que funcionem nesse formato, o problema começa a saltar aos olhos. Inovar é bom e necessário, mas quando a tradição se mostra superior, o melhor é se adaptar a ela.
Séries são, por natureza, episódicas. Isso significa que você pode aproveitar cada episódio, mesmo que o final da série não seja bom. É claro que todos queremos chegar a uma conclusão satisfatória. No entanto, hoje vivemos em uma cultura de urgência. Parece que ninguém tem tempo para nada e o volume de produções é altíssimo, então as pessoas optam por minisséries apenas para saber como terminam. Exceto séries que demoram mais de dois anos para retornar e acabam cansando o público — como já mencionei aqui —, ainda existem verdadeiras preciosidades exibidas semanalmente, onde cada hora pode ser apreciada como pequenas, porém, substanciais revoluções. Essa necessidade de que as tramas sejam enxutas e foquem em uma única questão prejudica a essência da televisão, que é explorar gêneros e a criatividade dos roteiristas. Cada mídia tem seu lugar: filme é filme, série é série e minissérie é minissérie. Finais podem arruinar um filme de duas horas ou uma minissérie de dez episódios, pois a história é centrada nisso. Mas, um final ruim arruinar uma série de seis ou oito temporadas após tantos episódios espetaculares? Definitivamente não.
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