Terceira diretora a vencer a Palma de Ouro e retorno de veteranos foram os grandes destaques do maior festival internacional de cinema na França
Justine Triet com a Palma de Ouro - Divulgação: Loic Venance / AFP
Entre os dias 16 e 27 de maio alguns dos maiores nomes do entretenimento mundial se concentraram na litorânea cidade francesa de Cannes e fizeram com que os olhos da mídia se voltassem para o 76º Festival Anual de Cinema de Cannes. Pessoas que trabalham com produção audiovisual, seja cinema ou propaganda, modelos, designers de moda, digital influencers e jornalistas convergiram para o evento que molda uma perspectiva para distribuição e comercialização de títulos dos mais diversos países e – para quem gosta de acompanhar premiações de língua inglesa – dita tendência para os prêmios da temporada de ouro no final do ano.
O Festival de Cannes foi criado, entre outras motivações, como uma maneira de se opor ao Festival de Veneza, cidade italiana que à época (1939) estava sob o regime fascista da Alemanha e Itália. A primeira edição que deveria acontecer em 1939 foi adiada devido a invasão na Polônia pelas tropas alemãs. Foi então em setembro de 1946, um ano após o final da segunda grande guerra, que aconteceu o primeiro Festival Internacional du Film, nome oficial da mostra até 2002 quando virou oficialmente Festival de Cannes (nome que fora adotado muito antes extraoficialmente).
Júri de Cannes 2023 na cerimônia de encerramento - Divulgação: Daniele Venturelli / Getty Images
De lá pra cá muita coisa mudou, estruturalmente, logisticamente e organizacionalmente, mas pouca coisa mudou politicamente e sociologicamente, por assim dizer. Em 76 anos de festival essa foi a edição onde mais diretoras mulheres concorreram ao prêmio da Competição Oficial, a Palma de Ouro. 21 filmes disputavam a Palma, 14 dirigidos por homens, 7 por mulheres. O Festival esse ano tentou usar isso como um grande chamariz para sua representatividade – mesmo com a disparidade 2:1 – mas logo de cara foi visto com certa hesitação por anunciar como filme de abertura um longa que ia de encontro ao que eles estavam tentando pregar.
Anatomy of a Fall, da diretora francesa Justine Triet, foi o vencedor da Palma de Ouro. A produção foi quase que uma unanimidade entre os críticos e conquistou o júri presidido pelo cineasta ganhador da Palma de Ouro do ano passado Ruben Östlund. A escolha encerrou, então, o ciclo que Cannes 2023 tão orgulhosamente sustentou e quase foi quebrado pelo próprio tiro no pé. Dito isto, essa é apenas a terceira vez que uma diretora vence o prêmio. A neozelandesa ganhadora do Oscar Jane Campion foi a primeira a vencer, em 1993, por O Piano; e em 2021, a cineasta francesa Julia Ducournau venceu por Titane (ela também compunha o júri de 2023).
Cena de Anatomy of a Fall - Divulgação
O finlandês Aki Kaurismäki, que desde 2017 não dirigia um longa-metragem, retornou a Cannes com Fallen Leaves, um dos mais (se não o mais) elogiado pela crítica internacional. Mas é importante ver até onde a crítica influencia em premiações feitas por um determinado grupo. Algumas horas antes da premiação um perfil no twitter relembrou de uma entrevista dada a um jornal espanhol em 2017, onde o presidente do júri Ruben Östlund cita Kaurismäki como exemplo contrário ao seu modo de pensar.
“A diferença entre ricos e pobre, a luta por uma sociedade mais justa. Quando um mendigo se aproxima de você na rua, o que você faz?
Nunca dou dinheiro a um mendigo. Na Escandinávia isso é um problema, uma responsabilidade do Estado, do sistema, não é problema meu. Quando vejo os filmes de Kaurismaki, penso que é um completo idealista. É uma postura que me parece inútil.”
Então com isso mente já se sabia que as chances do finlandês vencer esse ano estavam baixas apesar da aclamação do público e da crítica. O que colocava a disputa – aparentemente – entre Anatomy of a Fall e The Zone of Interest, de Jonathan Glazer. Quando foi anunciado que The Zone of Interest havia vencido o Grande Prêmio do Júri – a menos que uma grande zebra acontecesse – todos esperavam que o filme de Justine Triet levasse o prêmio principal. Nas outras categorias, Tran Anh Hung venceu o prêmio de Melhor Direção por The Pot Au Feu. Merve Dizdar venceu o prêmio de Melhor Atriz por About Dry Grasses, de Nuri Bilge Ceyla e Koji Yakusho foi eleito o Melhor Ator por Perfect Days, de Wim Wenders.
Entre os brasileiros que marcaram presença no festival francês estava o pernambucano Kleber Mendonça Filho, que exibiu seu documentário Retratos Fantasmas. Depois de Bacurau, vencedor do Prêmio do Júri em 2019, Kleber Mendonça Filho revisita sua cidade natal pelo prisma histórico dos cinemas que já frequentou. Baseado, em parte, em imagens de seu arquivo pessoal, o documentarista lembra aos espectadores que esses lugares idílicos, agora fechados, constituíram um importante marcador de tempo na evolução do tecido moral da sociedade brasileira.
Equipe de A Flor do Buriti em Cannes 2023 - Divulgação: Pascal le Segretain / Getty Images
Na mostra Um Certo Olhar o filme A Flor do Buriti venceu o prêmio de Melhor Equipe. A direção é da brasileira Renée Nader Messora e do português João Salaviza. O longa reconstitui as últimas oito décadas do povo Krahô, do norte do Tocantins. Com elenco formado por povos indígenas, a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, também está no filme. A dupla de diretores já foi premiada em Cannes, em 2018, com o filme Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos, também rodado em aldeias dos Krahô, e que venceu o prêmio especial do júri na mostra.
Grande destaque também para o cearense Karim Aïnouz que disputou a Competição principal com seu filme de estreia em língua inglesa, Firebrand. O drama que reconta a história de Henrique VIII e Katherine Parr sob o ponto de vista dela recebeu críticas variadas, mas foi um importante showcase para Karim que já anunciou sua nova produção internacional chamada Rosebushpruning, com Kristen Stewart e Elle Fanning no elenco e roteiro de Efthimis Filippou (O Lagosta), adaptado do clássico italiano De Punhos Cerrados (1965), de Marco Bellocchio.
E falando no diretor italiano, ele também esteve na 76ª edição do Festival concorrendo à Palma de Ouro com seu novo filme Rapito, que conta a história verdadeira de um menino judeu que fora sequestrado por autoridades papais a fim de se tornar um padre no Vaticano. Aplaudido por 13 minutos o filme emocionou muitas pessoas. Outro figurão que concorreu ao prêmio principal foi o inglês Ken Loach, que depois de anunciar aposentadoria e cancelar a aposentadoria algumas vezes esteve presente, aos 86 anos, com seu novo filme The Old Oak.
Martin Scorsese e equipe de Killers of the Flower Moon em Cannes - Divulgação
Fora da Competição, Cannes presenciou as primeiras exibições de aguardados filmes de 2023. Indiana Jones e o Chamado do Destino, de James Mangold, não foi tão bem recebido pela crítica, mas independente disso Harrison Ford foi homenageado com uma Palma de Ouro Honorária. O espanhol Pedro Almodóvar exibiu seu curta Extraña Forma de Vida e arrancou bons elogios do público e dos jornalistas. O novo épico de Martin Scorsese, Killers of the Flower Moon, também teve sua première em Cannes em sessão única e bastante disputada.
Se não por tudo isso, o Festival é ainda relevante por manter a chama acesa para os apaixonados por cinema que anseiam por ver os novos trabalhos de seus autores preferidos e pelo buzz que gera duas semanas com filmes novos estreando diariamente; e também por apresentar novas diretoras e novos diretores (ou mesmo não tão novas e novos assim) para quem não os conhecia, seja para o público ou seja para o mercado (que no fim das contas se resume ao público).
COMPETIÇÃO
Palma de Ouro Anatomy of a Fall, de Justine Triet Grande Prêmio do Júri
The Zone of Interest, de Jonathan Glazer Melhor Diretor
Tran Anh Hung, por The Pot Au Feu Melhor Atriz
Merve Dizdar, por About Dry Grasses, de Nuri Bilge Ceylan
Melhor Ator
Koji Yakusho, por Perfect Days, de Wim Wenders
Melhor Roteiro
Sakamoto Yuji por Monster, de Kore-Eda Hirokazu Prêmio do Júri
Fallen Leaves, de Aki Kaurismaki
Palma de Ouro de Melhor Curta-metragem
27, de Flóra Anna Buda
Prêmio Camera D'Or da Quinzena dos Cineastas Inside the Yellow Cocoon Shell, de Thien An Pham
Menção Honrosa Curta-Metragens
Fár, de Gunnur Martinsdóttir Schlüter
Palma Queer
Monster, de Kore-Eda Hirokazu
UM CERTO OLHAR / UN CERTAIN REGARD
DIRECTORS’ FORTNIGHT
SEMANA DOS CRÍTICOS
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