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Foto do escritorCaio Augusto

Crítica | A Substância

A mulher que virou suco

Foto: Divulgação


Se em Barbie (2023), a diretora Greta Gerwig cria um universo comicamente superficial, em A Substância (2024) temos um universo superficialmente grotesco. No geral, ambos os filmes abordam a matriz do tema que move a engrenagem de todas as problemáticas: o patriarcado. Partindo de uma perspectiva de um mundo dentro do mundo, o cenário que acompanhamos é sempre fechado e visto apenas pela perspectiva da personagem, seja de Elisabeth Sparkle ou da Barbie. A Barbie se vê ameaçada em um mundo dominado por Ken's; já Elisabeth é substituída quando se dá conta de que, nesse mundo, é o olhar masculino quem dita as regras.


Em A Substância, uma atriz é considerada "velha demais" para continuar trabalhando em Hollywood. Ela decide recorrer a um controverso programa de rejuvenescimento, que usa uma substância milagrosa para restaurar sua juventude. No entanto, o tratamento tem um custo alto: Elisabeth (Demi Moore) começa a dividir seu corpo com uma versão mais jovem e melhorada de si mesma, chamada Sue (Margaret Qualley). Conforme Sue ganha controle, Elisabeth perde sua própria identidade, mergulhando em um pesadelo surreal.


Desde a cena do “parto” de Sue, que resulta nessa troca de corpo, é como se a personagem partisse da mesma lógica da Barbie quando transita entre a Barbieland e o mundo real. Se em um mundo os problemas do patriarcado ainda conseguem ser mascarados, no outro, eles são escancarados e assombram a personagem. Sue é quase como uma espécie de Barbie instrutora de zumba, insistindo em viver em um mundo artificial e idealizado, longe dos verdadeiros problemas, seja o patriarcado ou a simples ação natural do tempo. Entre essas transições, que ocorrem a cada sete dias entre um corpo e outro, até que ambos os mundos colidem e o problema vem à tona — o que ocorre justamente quando, em Barbie (2023), a personagem de Margot Robbie vê seu mundo sendo tomado pelos Ken's.


Há um minimalismo na forma que é facilmente justificado em A Substância, quando o filme se inclina a explicar como funciona cada mecanismo daquele universo que nos é apresentado, ao mesmo tempo que maximiza questões através de personagens caricaturais e situações de completo exagero. Por vezes, o filme está tão focado em causar mal-estar que perdemos qualquer percepção da realidade, com hiperestímulos que acabam derrapando nos mesmos problemas de Triângulo da Tristeza (2022). Isso não é necessariamente um problema, mas quando juntamos isso aos flashbacks incessantes e à montagem dialética, que parte para um caminho mais didático e insiste em contar a mesma história mais de uma vez, quase subestimando o espectador, o filme acaba pecando nessa falta de sutileza.


Por outro lado, a caricatura dos personagens masculinos é bem-vinda dentro da proposta do filme, pela forma como as mulheres precisam lidar com homens medíocres a nojentos. Tudo isso é capturado pelas lentes da diretora Coralie Fargeat, que utiliza grande angular para apresentar a figura do homem que invade o espaço da mulher com seu olhar evasivo e sua postura opressora. Temos essa representação máxima na figura do personagem de Dennis Quaid.

Foto: Divulgação


De início, a trama do filme parece se inclinar a algo que me remeteu ao filme A Malvada (1950), no sentido de abordar o envelhecimento e a perda de fama em Hollywood, bem como a influência corrosiva dessa indústria em suas estrelas. Ao mesmo tempo, ele parece se fechar na realidade apenas da personagem de Demi Moore, uma mulher vaidosa e apegada à fama. O conto moral deixa aberta uma lacuna que cabe ao espectador preencher com suas próprias percepções. Eu, particularmente, penso na idealização do corpo feminino na nossa sociedade, partindo da estética Kardashian-Jenner, onde o corpo passa por tendências e se torna uma mercadoria, tratado como um fetiche de consumo. Qualquer corpo fora do padrão é subjugado. Podemos até mesmo considerar a questão do Ozempic, que tem se tornado um problema de saúde pública, para atualizar ainda mais o assunto e aproximá-lo da nossa realidade.


Apesar de o filme não se passar na era das mídias sociais, onde o esteticismo físico e o estilo de vida irrealista são projetados para serem engajados por curtidas e compartilhamentos, o universo apresentado funciona muito bem no zeitgeist atual. O filme funciona como uma sátira que denuncia a obsessão da sociedade pela eterna juventude, usando as redes sociais como uma espécie de vitrine do corpo ideal. Essa busca muitas vezes é alcançada por procedimentos cada vez mais invasivos. Em uma sociedade onde as pessoas estão cada vez mais dispostas a mutilar seus corpos para atingir padrões de beleza irreais, a diretora Coralie Fargeat resolve representar esse momento através de cenas de horror corporal.


Quando essa temática é representada pelo horror corporal e caminha para o fantástico, o filme começa a prender um pouco mais minha atenção. Fargeat leva a premissa do horror corporal longe demais, quase como se estivesse empenhada em completar uma lista de verificação do tema. Unhas e dentes são arrancados, feridas são cutucadas, e novas transmutações surgem, quase como um Frankenstein amontoado de carne. Sequências claustrofóbicas e hiperestilizadas tornam-se o tropo do filme sobre o medo de envelhecer, um medo porque uma mulher mais velha é facilmente substituída. O homem se interessa pelo jovial, quase como um obsessor que se alimenta da juventude da mulher enquanto estética e imagem, e qualquer coisa diferente disso não o interessa, sendo descartável.


No entanto, o filme flutua entre o sofisticado e o exagerado, sem conseguir equilibrar essas tonalidades de maneira eficiente. Há uma incerteza sobre qual direção seguir, o que acaba gerando confusão no tom e deixando a narrativa em conflito com sua própria identidade. O filme tem uma mensagem clara e sabe o que quer dizer, mas o problema é que ele insiste em garantir que o espectador entenda isso repetidamente. No final, Elisabeth Sparkle é tão subjugada pela sociedade que, mesmo quando retorna em sua versão mais jovem, o sistema a "espreme". Confesso que não resisti e vou acabar usando o trocadilho mais óbvio para este filme: trata-se de uma substância ou, simplesmente, da falta dela. Gosto de como a última metade do filme se torna insana ao partir para o grotesco total, mas o problema é a falta de foco claro, pois o filme salta constantemente e carece de consistência.


Mas há um ponto na existência desse filme que me provocou uma reflexão específica. Sue, que seria uma espécie de "duplo" mais jovem de Elisabeth, tem um corpo escultural adaptado às exigências patriarcais: pernas longas e torneadas, seios empinados, pele macia e cabelos sedosos. Logo na primeira cena em que a personagem de Margaret Qualley nos é apresentada, a diretora tenta simular o que Laura Mulvey traz através da teoria feminista com o conceito de "olhar masculino". Esse conceito não se refere necessariamente à figura da mulher sexualizada na tela, mas sim à montagem dialética da imagem da mulher atraente alternando para um homem olhando para ela, transferindo todo o valor da imagem para o espectador.


Dessa forma, quando Fargeat filma toda a sequência de Margaret Qualley sensualizando em frente à câmera, há uma emulação desse olhar masculino, nos obrigando a desejar esses corpos, de modo que as imagens contradizem a intenção inicial. Isso levanta um questionamento: vale a pena satisfazer o olhar do espectador heterossexual no início do filme para tentar chocá-lo com o grotesco no final? Isso se configura, de fato, como uma estratégia subversiva? O desejo não é o problema em si; o problema surge quando apenas os corpos femininos estão dentro dessa configuração.


Nota: 2,5/5

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