Walter Salles cria obra soturna e emocionante sobre ausência e memória
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No início da década de 1970, o Brasil enfrenta o endurecimento da ditadura militar. No Rio de Janeiro, a família Paiva – Rubens (Selton Mello), Eunice (Fernanda Torres) e seus cinco filhos - vive à beira da praia em uma casa de portas abertas para os amigos. Um dia, Rubens Paiva é levado por militares à paisana e desaparece. Eunice - cuja busca pela verdade sobre o destino de seu marido se estenderia por décadas - é obrigada a se reinventar e traçar um novo futuro para si e seus filhos.
Que trato e que sutileza em abordar uma história dura quase intragável o cineasta Walter Salles consegue. O filme abre com um idílico Rio de Janeiro, uma residência à beira-mar e uma família grande em perfeita harmonia. Tudo que o olhar toca nos 15 primeiros minutos é essencial para a perfeita construção de tempo e espaço, para a criação daquele “mundo”. A praia, o cachorro, os laços familiares, a vibrante câmera caseira, a deliciosa trilha sonora, a luz, e, sobretudo, os sorrisos e a casa.
A direção de arte do argentino Carlos Conti é assustadoramente precisa e rica nos detalhes. A casa que é palco para a maior parte do longa-metragem é a segunda personagem mais importante, obviamente depois da brilhante Fernanda Torres (já chegaremos nela). O mobiliário, os objetos, os azulejos, as cores, as texturas, tudo faz com que a ambientação se imponha como relevante na história e deixe o espectador à vontade naquele espaço. Não tem como não recordar a relação família-lar milimetricamente empregada por Alfonso Cuarón na obra-prima Roma (2018). E a casa é a primeira personagem a avisar que o tom do filme muda entre o primeiro e o segundo ato. Os sorrisos somem, as janelas se fecham, a luz dá espaço para a penumbra, para a dúvida, para o desconhecido. E é aí que a também impecável direção de gênio da luz Adrian Teijido se exibe sem qualquer pudor e ainda assim carregado de sagacidade. A segunda parte do filme, quando Rubens deixa sua família, é acompanhada por sussurros e por sombras, e a alteração no tom estético é feita com uma organicidade que o espectador sente antes mesmo de perceber. E a casa segue roubando a cena até que se torna vazia, calada, marcada pelas ausências e pelo eco, num dos momentos mais simbólico da produção. O filme é de um refinamento técnico do mais alto bom gosto e boa execução.
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Fernanda Torres está sobrando no filme. Sem desmerecer a todos os outros nomes do elenco que desempenham ótimos papéis, e aqui quero destacar os rostos mais jovens que em nada deixaram a desejar aos mais experientes, é Fernanda que sabe dosar entre o doce e o amargo em sua Eunice sempre à beira de uma explosão. Mas não há explosão, tudo Eunice engole em seco, tudo Fernanda tem que conter, tudo Eunice arrasta para si, tudo Fernanda controla ao seu redor. É suave e pesada, é carinhosa e mordaz. É uma atuação cuidadosamente estudada para a história e grandiosamente consagrada para a História.
E essa contenção da protagonista é também sentida no desenvolver da narrativa. O texto fica tão denso e tão seco que carece de um ponto de inflexão que nunca vem, que nunca veio. E de repente temos um passar de tempo injusto, um desfecho amargo, mesmo sendo uma história real. Pouco antes da conclusão, o filme parece cair num entrave de como conseguir unir passado e futuro com a mesma intensidade e se resolve usando caminhos simples demais em comparação a riqueza de recursos que usou em sua primeira metade.
Ainda Estou Aqui é um filme político que prende pelo viés da consequência em vez da causa. Ele usa dos seus efeitos para lembrar que se mudam os contextos, mas a dor e o vazio permanecem em constante batalha com a memória pelo que se um dia se conheceu como justo, como certo. É uma história tão recente que ainda incomoda. É doloroso assistir a, por exemplo, Argentina, 1985 (2022) e saber que nunca contaremos nossa história com a alma lavada. Mas enquanto houver esse incômodo é bom saber que temos a arte para extrair beleza e classe de onde só se viu dor.
Nota: 4/5
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