top of page
Background.png
capa-cabeçalho-marco2025.png

Crítica | Cidade dos Sonhos (2001)

  • Foto do escritor: Gabriella Ferreira
    Gabriella Ferreira
  • há 2 dias
  • 4 min de leitura

Um filme que já nasceu clássico pelo olhar e pela ideia de ousar sonhar de um gênio.

Divulgação


Nesta quinta-feira, 17, Cidade dos Sonhos retornou aos cinemas remasterizado e em 4K. Lançado originalmente em 2001, o longa se tornou um dos mais emblemáticos da carreira de David Lynch, e lhe rendeu uma indicação ao Oscar de melhor direção. Lynch, que faleceu no início deste ano, provavelmente tinha ideia de que Cidade dos Sonhos é mais do que apenas mais um filme na sua carreira. Ele é considerado por muitos um dos melhores longas de todo o século 21, talvez um dos melhores de toda a história do cinema. Parece muito hype para quem não viu? Talvez. Mas a genialidade da trama que saiu da mente de Lynch junto de uma estética tão única e característica torna Cidade dos Sonhos quase um fascínio místico. 


Originalmente filmado em 1999 como um piloto para a TV, Cidade dos Sonhos foi rejeitado. No ano seguinte, David Lynch recebeu dinheiro para filmar novas cenas e transformar o projeto em um filme para os cinemas. Ele o fez — e criou um dos filmes mais grandiosos, bizarros e perturbadores já feitos. À primeira vista, o longa parece alinhar-se a uma estrutura relativamente tradicional: a jovem Betty (Naomi Watts), cheia de sonhos hollywoodianos, chega a Los Angeles para tentar a sorte como atriz. Logo se envolve com a misteriosa Rita (Laura Harring), que sofre de amnésia após um acidente de carro na estrada Mulholland Drive. O que se apresenta como um thriller gradualmente se desfaz em uma espiral onírica de imagens desconexas, simbolismos densos e identidades fragmentadas.


Dissolvendo as fronteiras entre sonho, realidade, identidade e narrativa com uma precisão inquietante, Cidade dos Sonhos é um filme sobre Hollywood e a indústria cinematográfica, mas não só o espaço físico Hollywood como, principalmente, a ideia de Hollywood no imaginário americano. O filme opera sob uma lógica não linear, onde a primeira metade encena um desejo idealizado e a segunda colapsa essa fantasia em uma realidade crua e brutal que doi em assistir. O que começa como um conto de fadas noir se transforma em um pesadelo existencial, onde o tempo se dobra, os personagens se confundem e a identidade se revela como uma construção frágil, sujeita às pressões do desejo, da culpa e do fracasso.


Lynch desconstroi a narrativa hollywoodiana clássica por meio da forma e do conteúdo. O uso do som é meticulosamente manipulado para gerar estranhamento, e a trilha de Angelo Badalamenti cria uma atmosfera de constante deslocamento emocional. A mise-en-scène é labiríntica, espelhando o estado mental das personagens, e a montagem, com seus cortes abruptos e passagens inexplicáveis, encarna o próprio colapso da narrativa racional. 


A chave para compreender Cidade dos Sonhos está na instabilidade das identidades. Betty e Rita, na primeira metade do filme, funcionam como projeções idealizadas: a atriz inocente e talentosa que chega à cidade dos sonhos e a mulher misteriosa que precisa ser protegida. Elas existem dentro de uma espécie de simulacro hollywoodiano, onde tudo é artificialmente belo e promissor. A própria cidade de Los Angeles, com suas colinas, névoas e mansões, torna-se um espaço de delírio e distorção.

Divulgação


Cidade dos Sonhos pode ser lido como o ápice de um processo que Lynch já vinha experimentando em obras anteriores, como Veludo Azul (Blue Velvet, 1986) e Estrada Perdida (Lost Highway, 1997). Em todos esses filmes, há uma desconstrução da identidade, uma violência subterrânea que brota sob a superfície da vida cotidiana e um fascínio por figuras femininas dúbias e ambíguas.


Assim como em Veludo Azul, onde a cidade aparentemente pacata esconde horrores inomináveis, em Cidade dos Sonhos a cidade do glamour se revela como uma fábrica de frustrações, desejos inconfessos e ruínas psíquicas. O uso do som ambiente, dos silêncios pesados e da montagem disjuntiva são marcas da linguagem lynchiana em estado puro.


Há um jogo constante com a performance: Naomi Watts entrega uma atuação camaleônica, transitando entre a doçura ingênua e o desespero psíquico absoluto. Seu teste de atuação no meio do filme (uma cena dentro da cena) exemplifica a tensão entre ilusão e verdade, arte e vida, que atravessa toda a obra.


Quando a narrativa se desfaz e as identidades se embaralham, o que se apresenta é um colapso subjetivo. O espectador é empurrado para um terreno de instabilidade ontológica: quem são essas mulheres? Onde começa a ficção e termina a realidade? Teriam elas existido, ou são fragmentos de uma mesma consciência despedaçada?


A performance de Naomi Watts é central nesse processo. Na transição de Betty para Diane, há uma mudança não apenas na atitude e no tom, mas na própria energia vital da personagem. Ela se torna uma mulher corroída pela inveja, pelo ressentimento e pela culpa. Em contraste, Laura Harring se transforma de figura frágil e amnésica em uma presença sedutora, quase cruel.


Mais do que um mistério a ser resolvido, Cidade dos Sonhos é uma experiência a ser sentida, uma meditação sobre os mecanismos do desejo e a falência das promessas de Hollywood. Lynch não oferece respostas, mas fabrica um espelho quebrado onde cada fragmento reflete um aspecto distorcido da nossa própria sociedade. Em Cidade dos Sonhos, o ‘American Dream’ implode em delírio, e o espectador, perdido nesse labirinto de símbolos e silêncios, emerge transformado ou perturbado de um filme que é inesquecível e que perdurará na história do cinema por muitos e muitos anos. 


Nota: 5/5


Comments


bottom of page