Os bastidores do artigo que chacoalhou a indústria cinematográfica hollywoodiana
Divulgação: Universal Pictures Brasil
Em 5 de outubro de 2017 duas jornalistas do poderoso The New York Times, Jodi Kantor e Megan Twohey expuseram a conduta inapropriada do ex-figurão do cinema através do artigo “Harvey Weinstein Paid Off Sexual Harassment Accusers for Decades” (tradução da autora: “Harvey Weinstein pagou pelo silêncio de seus assédios por décadas”). A história que rodou o mundo, promoveu discussões sobre abuso sexual em ambientes de trabalho e impulsionou o movimento #MeToo nas redes sociais chegou aos cinemas com um elenco renomado e execução convincente.
Se você está procurando por um filme levinho à la sessão da tarde, já aviso que este não é sua opção. A direção precisa de Maria Schrader flerta assertivamente com os fatos, e é possível que em alguns momentos o traçado que divide a realidade da ficção torne-se mais embaçado, com a ajuda de recursos externos. Os espectadores mais ansiosos (como eu), ou que curtem um gênero mais ágil, aqui, terão de aprender a esperar. E arrisco: esperar pode ser prazeroso.
É interessante como a costura dos fios das vidas das personagens, que vão se aproximando de modo progressivo, é tecida visualmente. Apesar de ambas trabalharem no célebre The New York Times, fica visível que Jodi e Megan além de estarem em diferentes momentos da vida no aspecto profissional e pessoal, não tinham intimidade. E é completamente aceitável dentro de uma empresa com mais de 4 mil funcionários. É legal também a forma como elas se aproximam – por admiração e aconselhamento. Não sei se o livro (publicado no Brasil pela Companhia das Letras) descreve com detalhes como foi a aproximação, mas a escolha narrativa é sutil e suave. Female gaze at its finest.
Este é um retrato real-ficcional sobre violências cometidas contra as mulheres, e no decorrer do longa outras modalidades apresentam-se discreta e cotidianamente, mostrando como o assédio moral, físico, intelectual e sexual são frequentes, e mesmo a contragosto, recebemos reforço da sociedade para achar normal, inevitável. Outro detalhe importante (ponto para a direção e roteiro!) é a ausência da face do abusador. Obviamente, Harvey Weinstein não concordaria em aparecer num filme que o desmascara, e esse papel é atribuído ao dublê de corpo e voz, Mike Houston. Mas no momento em que este traço separador da realidade ficcional e da ficção da realidade é ultrapassado, com o áudio original contendo a voz do ex-produtor intimidando a modelo Ambra Battilana Gutierrez em 2015, enquanto a câmera percorre lentamente - quase como uma punição? - os corredores do Peninsula Hotel, a indignação e a dormência impotente invadem quem assiste.
Dizer que Carey Mulligan (Bela Vingança), Zoe Kazan (Clickbait) e Patricia Clarkson (Objetos Cortantes) executaram com precisão e credibilidade é chover no molhado. Mas preciso e quero destacar a participação de Samantha Morton (Alpha em The Walking Dead) como Zelda Perkins. A performance, ainda que curta, é como um raio, que brilha e atemoriza. Em poucos minutos ela segura a cena com maestria, e a dobradinha com Zoe Kazan em seu silêncio presente, atento, e de quem não consente, fecham um ato importante para o final - do longa e da matéria.
A cadência do filme, sutil e lenta, sem deixar de ser forte e intensa, espelha o sentimento e o tempo por detrás da revelação do abuso. Para mim, como mulher negra que sofreu assédio, a experiência do tempo foi como uma grande pausa, até perceber muitos anos depois que o que fora feito não era normal. Ao fim do filme, a sensação que permanece é a de vingança adiada. Vencemos, mas até quando? Se aquelas mulheres brancas, atrizes de alto renome e prestígio, foram assediadas com o silêncio permissivo e omisso da comunidade cinematográfica de “alto” escalão, o que dizer de nós, mulheres negras, dissidentes de gênero, pertencentes ao Sul Global? Não mudaremos o mundo, mas insistiremos. She Said é a demonstração pública de um clamor que não vai parar.
Nota: 4.5/5
Excelente