Nova temporada mostra que Noah Hawley ainda tem muito o que contar e sabe como fazê-lo
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De início, conhecemos uma mulher que parece esconder um segredo, um marido meio abobalhado, a filha do casal e a riquíssima sogra da moça que parece não ser muito sua fã. A moça se chama Dot (Juno Temple) e dois homens estão tentando sequestrá-la. Ela luta como pode e consegue escapar, mas não quer envolver a polícia e prefere fingir que nada está acontecendo, até que as tentativas se tornam recorrentes. Se a princípio, as suspeitas poderiam cair sobre Lorraine Lyon (Jennifer Jason Leigh), sua sogra, logo se revela que o autor é Roy Tillman (Jon Hamm), um xerife de uma pequena cidade. O porquê não é imprevisível, mas a série prefere ir construindo sua trama aos poucos enquanto desenvolve os personagens e consegue fazer isso de uma maneira brilhante.
Em dez episódios, semana após semana, Noah Hawley e seu time de roteiristas foram nos cativando com Dot e sua força de viver, proteger a vida e a família que ela construiu longe do abuso de Roy, que agora volta para assombrá-la. A escolha do elenco é nada menos do que perfeita. Juno Temple tem o tamanho e a doçura ideal para que seus captores a vejam como uma presa fácil, subestimando sua inteligência e agilidade, mas para nós telespectadores, ela vai se mostrando além desde o primeiro momento, com um equilíbrio irretocável entre a ferocidade e a sutileza, sem falar no sotaque maravilhoso que ela incorpora e não poderia estar mais distante de sua personagem britânica de Ted Lasso. Jon Hamm está excelente nesta sátira do cidadão de bem, homem de família temente a Deus, mas que comete as maiores atrocidades amparado pela visão misógina de que a mulher é um ser inferior e deve obedecer ao seu eterno marido, enquanto ele já está casado com outra vítima, digamos assim. A Lorraine de Jennifer Jason Leigh tem um dos meus arcos favoritos da temporada, com uma construção que começa aparentemente rasa e vai mostrando suas variadas camadas com o passar dos episódios, com um senso de humor ácido e seu admirável timing.
Não posso apenas citar o trio principal e deixar de lado os ótimos coadjuvantes, que tiveram tramas conectadas com o núcleo central e uma enorme competência em representar seus personagens, como Joe Keery que é Gator, filho de Roy, ou os policiais que tentaram ajudar Dot, feitos por Richa Moorjani e Lamorne Morris. Este último, dono de um carisma inegável, mas não foi tão trabalhado durante a temporada quanto seus colegas. Também vale mencionar David Rysdahl como Wayne, o marido inocente e amoroso de Dot, Dave Foley como Danish, o advogado e braço direito de Lorraine, mas que através dele, conhecemos outras facetas dela. Por último e definitivamente não menos importante, Sam Spruell como Ole Munch, um dos capangas contratados por Roy para sequestrar Dot. Um personagem que tem muito mais a mostrar do que aparentava e foi uma das maiores surpresas da temporada.
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Fargo, desde o filme, tem um tom meio exotérico que sabe passear por diversos gêneros sem perder sua identidade. A escolha de abordar um tema social tão relevante quanto a violência doméstica honestamente e sem soar apelativa, foi certeira. A decisão do roteiro e da direção do que mostrar e não mostrar é genial, porque sabemos o que está se passando, sentimos o peso daquilo, sem que seja preciso ver de fato, como por exemplo em cenas que envolvem agressões de Roy com suas mulheres. Isso não quer dizer que não haja violência, que sempre foi uma característica deste universo, ela só não é gratuita ou usada unicamente para chocar. Outro exemplo disso, é quando finalmente conhecemos a trágica história de Nadine, a moça que Dot já foi um dia, e ela é contada através de uma encenação com fantoches. Por mais pesada que seja, há ali uma quebra que a deixa mais palatável aos nossos olhos. Provas do enorme talento de Hawley, que co-escreveu o devastador ‘Linda’ – episódio em que esta sequência acontece – com April Shih, e a perspectiva feminina era essencial aqui, principalmente neste episódio.
O ritmo que permeia a temporada é intenso. Não falta ação e acontecimentos marcantes, seja nas sequências engenhosas à lá Tom & Jerry, em que Dot monta diversas armadilhas pela casa enquanto tentam sequestrá-la, ou nos momentos mais sutis de pura emoção. Ali pela metade do estonteante episódio final, tudo já parecia ter sido feito e dito. O que ainda restava? Havia, de fato, uma ponta solta e foi amarrada da maneira mais bonita e surpreendente possível. A cena é orquestrada com uma tensão quase palpável, ninguém consegue prever o desfecho e tudo poderia dar errado. Quero evitar qualquer spoiler, mas é uma sequência que honra tudo o que foi construído durante a temporada e ainda a engrandece, o que parecia ser impossível porque já estava, praticamente, irretocável. A inspiradora jornada de superação de Dot, essa heroína atípica, foi contada por Noah Hawley e sua equipe da forma mais respeitosa e emocionante, e mesmo que você não tenha assistido nada de Fargo, não vai se arrepender de assistir esta perfeição que dosa perfeitamente sua alta relevância social com o entretenimento que só a televisão de qualidade nos proporciona.
Nota: 5/5
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