Um filme muito aquém das possibilidades do cinema de Eliane Caffé
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Em seu livro Nordestino: a invenção do falo, o historiador Durval Muniz de Albuquerque Jr. trata a respeito da construção do ideário do homem “cabra macho” nordestino, uma figura viril, reacionária e violenta criada em resposta à crise da masculinidade que assolou o Nordeste a partir dos anos 1920. Via-se a sobrevalorização do patriarcado, de modo que houvesse uma afirmação do sexo masculino para que este ocupasse uma posição crucial dentro da organização política. Enquanto a mulher era relegada aos afazeres domésticos e ao cuidado com as crianças, o homem carregava consigo uma enorme reserva de agressividade e energia para descarregar, o que seria feito no espaço público.
Nos primeiros minutos de Filhos do Mangue, após ser encontrado desmemoriado na praia da comunidade onde vive, o protagonista Pedro Chão (Felipe Camargo) é levado para uma espécie de galpão e amarrado a uma cadeira, para então ser submetido por um julgamento público pelos demais moradores, que o acusam de ter roubado um dinheiro que lhes pertencia, além de forçá-lo a relembrar de diversas de suas ações criminosas e violentas. Esse homem confuso e perdido do presente é contrastado ao bruto do passado, que não se acanhava em explorar os corpos alheios para turistas na região, roubar dos outros moradores e até mesmo bater em sua mulher. Mesmo depois de livre, ele se vê confrontado pelos demônios do passado, ainda que não se lembre deles.
No papel, é uma ótima oportunidade da diretora Eliane Caffé explorar as noções de masculinidade e violência de gênero, enquanto há acenos para o turismo exploratório e a ameaça às tradições de lugares como as comunidades ribeirinhas. A diretora, notória pelo seu cinema docuficcional e atenção a personagens e grupos marginalizados — como visto em Narradores de Javé (2003) e Era o Hotel Cambridge (2016), este um dos meus filmes nacionais favoritos — tem um rico material em mãos para abordar através da sua já consolidada estética.
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É uma pena, portanto, que Filhos do Mangue nunca atinja esse potencial. Embora os elementos docuficcionais estejam lá, eles passam longe de ter o mesmo impacto dos longas anteriores da diretora. Veja o bloco das personagens femininas que se unem para protegerem umas às outras da violência perpetrada pelos homens da comunidade, como o próprio Pedro: ainda que seja louvável discutir tal tema, este parece deslocado dentre as várias sugestões narrativas que o filme dá a entender que irá tratar.
Não ajuda que, diferente de Era o Hotel Cambridge, por exemplo, aqui há uma proposta mais nítida de se apresentar um fio narrativo através da figura de Pedro e o drama que o cerca, de modo que todo o resto da obra — sejam subtramas ou personagens —é tratado em segundo plano. Infelizmente, se o personagem nos é mostrado inicialmente como um papel em branco dada a sua perda de memória, o filme pouco se esforça para escrevê-lo, mesmo com a possibilidade de confrontá-lo sobre a violência que carregava consigo e ocasionalmente ainda aflora. Felipe Camargo até se esforça (exceto no sotaque nordestino, que é fraco e risível até para ser genérico), mas o ator e o personagem parecem à deriva no longa de uma maneira que não me parece ter sido intencional.
Ainda assim, há elementos em Filhos do Mangue que nos lembram do quanto o cinema de Eliane Caffé é tão impactante. A intimidade com a qual a câmera mergulha pelos manguezais e praias, lança luz em determinados momentos para as vidas dos personagens e consegue extrair sua força de determinados blocos e atuações (como os atores mirins ou o personagem de Thiago Justino em seu monólogo) são instantes que nos mostram as possibilidades que o longa poderia ter abraçado em sua plenitude. A própria sequência inicial do julgamento público nos prepara para um filme muito diferente do que ele acaba por ser, nos desnorteando junto ao protagonista e apresentando uma tensão sufocante que, no entanto, nunca mais retorna.
Infelizmente, porém, no saldo geral Filhos do Mangue é uma oferta muito inferior ao que o cinema de Eliane Caffé já entregou até aqui. Possui boas ideias e relances do melhor que a diretora costuma entregar em seus filmes, mas nunca abraça por completo sua premissa principal e tampouco desenvolve satisfatoriamente as secundárias, ficando assim preso em um lugar tépido e sem vida, que não poderia estar mais distante da exuberância dos manguezais e litorais nordestinos e suas populações.
Nota: 2,5/5
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