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  • Foto do escritorVinicius Oliveira

Crítica | O Estranho

Ancestralidade e (não) pertencimento no maior aeroporto do país

Foto: Divulgação


Cunhado pelo etnólogo e antropólogo francês Marc Augé, o termo não-lugar se refere a espaços de transitoriedade onde os seres humanos permanecem anônimos e solitários. Como exemplo de não-lugares, pode se citar rodovias, quartos de hotel, shopping centers e aeroportos. Pense nas centenas, milhares de rostos que já viu nesses ambientes, rostos com os quais nunca vai formar uma espécie de conexão nesses momentos efêmeros. Mas e se esses não-lugares fossem (e ainda são) lugares para outras pessoas?


É essa a provocação feita por Flora Dias e Juruna Mallon em O Estranho, que segue a vida de determinados personagens que vivem, trabalham e orbitam em torno do Aeroporto de Guarulhos, o maior do país. Desde os primeiros minutos do filme, Dias e Mallon já nos questionam: o que havia antes do aeroporto naquele espaço? Levando-nos a diversos passados (até mesmo antes da colonização portuguesa) nessa sequência inicial, eles nos mostram que aquela terra já pertenceu a alguém, no caso os povos indígenas. Há até a possibilidade de que o filme vá abordar os diferentes personagens mostrados em diferentes épocas, como se entrecruzando suas tramas, mas ele logo se centra na figura de Alê (Larissa Siqueira), funcionária do aeroporto e com uma ligação pessoal com o lugar.


Transitando entre diferentes formatos (alguns bem-trabalhados, outros nem tanto), o longa segue uma estética semidocumental, onde os limites entre ficção e realidade são borrados até certo ponto à medida que acompanhamos a jornada dos personagens. Embora Alê seja a protagonista e aquela por meio do qual o filme exerce sua proposta de contrapor não-lugares à ancestralidade, também há espaço e inserções de outros personagens que gravitam ao seu redor, como sua namorada Silvia (Patricia Saravy), Antonia (Antonia Franco, ela própria funcionária do aeroporto) e outros.

Foto: Divulgação


Na mesma medida em que Dias e Mallon nunca se distanciam do aeroporto, também são capazes de mostrar como esse microcosmo é muito mais amplo e complexo do que guichês, plataformas de embarque e pistas de pouso. Prova disso é a belíssima sequência onde os personagens fazem uma trilha por uma reserva florestal, onde há inclusive uma conexão com uma das primeiras cenas na abertura do longa. Da mesma forma, a própria apresentação tradicional do aeroporto é subvertida, como na cena em que Alê e dois colegas dançam uma música de kuduro, música esta que gradualmente sai do plano diegético para o não-diegético, acompanhando-nos enquanto vemos as cenas habituais dos passageiros pelos saguões, numa intromissão que desafia as habituais percepções elitizadas de espaços como aeroportos.


O ritmo lento, quase como um fluxo, com planos longos e estáticos, pode pedir um pouco de paciência do espectador, mas é bem-sucedido em nos forçar a desacelerar o ritmo esperado de um não-lugar. Menos bem-sucedida, talvez, é a mudança de tom e direção no terço final da obra, que assume de vez sua estética documental ao inserir relatos das pessoas indígenas que vivem na reserva próxima ao aeroporto. Essa inserção tardia parece tentar nos lembrar da proposta original do filme sobre quem de fato são os donos da terra (não só em Guarulhos, mas em todo o Brasil), mas a ligação superficial apresentada antes no decorrer do filme — em ocasionais lampejos do arco de Alê, mas sem o aprofundamento necessário — acaba tirando parte do impacto dessa reta final. Mesmo com a pungência de alguns relatos e a contínua exploração de outros formatos (como o voice over de Alê para a irmã há muito tempo perdida), fica a sensação de que o filme se alonga mais do que deveria.


Mais eficaz em discutir a ocupação dos não-lugares e a força da memória como preservação e resistência, O Estranho acaba derrapando ao tentar trazer a ancestralidade para o primeiro plano, justamente por fazer isso num ponto já muito tardio da obra. Ainda assim, levanta discussões pertinentes que nos forçam a lembrar que essa terra, esse país, já era de alguém muito antes do primeiro português pisar os pés aqui. Sobre o solo que pisamos há história, sangue e civilizações inteiras, cujo legado precisa ser mantido e que o filme — mesmo que imperfeitamente — busca perpetuar.


Nota: 3/5

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