A escultura cinematográfica sobre um homem e seu império de devastação
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O clarão silente prefigura o estrondo. O único som que se ouve é o da voz, em tom autoconsciente, a consentir seu destino: “Agora torno-me a Morte, destruidora de mundos”. Depois, o estampido massivo e avassalador preenche violentamente cada canto da sala. Há fascínio e terror nos olhos dos personagens diante da representação, e nos olhos dos espectadores, presenciando a reprodução da explosão atômica na tela do cinema. Poucas vezes presenciei tamanha sinergia entre o real e a arte. À essa altura já estou convicta de que este é sem dúvidas o maior trabalho de Christopher Nolan: desde a escala da obra, os grandes planos, até o grande elenco – em relevância e em número – e, claro, a ambiciosa reprodução da Experiência Trinity, que revela o ponto alto do filme e a megalomania do diretor de Inception.
Mas ainda que seja um filme de suntuosas demonstrações do poderio que o nome de Christopher Nolan já carrega, seja pelo tamanho e peso dos rolos do filme, ou no uso pioneiro da filmagem em preto-e-branco no formato IMAX, ou até na recriação da bomba com efeitos práticos (ele não usou uma bomba de verdade); a narrativa concentra-se essencialmente em escoltar a pessoa de J. Robert Oppenheimer, desde seus primeiros desejos juvenis pelo (re)conhecimento e a paixão pela Física, suas ligações com movimentos de Esquerda, seus amores conflituosos, a sisudez e a personalidade labiríntica de motivações um tanto incompreensíveis, a ambiguidade entre a busca pela glória e o arrependimento pela concepção das ogivas que assolaram Hiroshima e Nagasaki.
Nolan entalha fendas no tempo fílmico, e nas curvas temporais que cria para fluir entre os acontecimentos cronológicos, pinta na cinematografia, com a ajuda do diretor de fotografia Hoyte van Hoytema – com quem já trabalhou no sci-fi pop Interstellar (2014), Dunkirk (2017) e no repetitivo e exagerado Tenet (2020) – a complementaridade narrativa. Nos planos-detalhe explorando ângulos, olhares e expressões de Cillian Murphy, que está completamente excepcional e entregue – será que finalmente a Academia o recompensará desta vez? –. Os flashbacks/forwards e elipses narrativas, impressão digital do Estilo Nolan, à exemplo dos diálogos mantidos em segredo como presentes ao que perseverar até o fim (como em Inception) das 3 horas, que demandam do público atenção e disponibilidade, mas que facilmente envolvem a audiência com beleza. É um filme bonito e provocativo. A nitidez na experiência IMAX traz, de fato, um diferencial específico. Porém, é válido deixar o aviso aos mais sensíveis audivelmente, como eu: a intensidade e volume do áudio vão oprimir – e não há ingenuidade aqui ao compreender que esta é a intenção.
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Há uma infinidade de pontos a destacar num longa – obrigada, Semântica – de 180 minutos. Mas certamente o plongée x contra-plongée [que em bom português quer dizer mergulho, ou aquela inclinação do ângulo muito frequentemente usada em cenas que demonstram a soberania ou a grandeza de uma pessoa em detrimento de outra(s)] na interação entre Oppenheimer e Isidor Rabi (David Krumholtz) é um ponto alto, e como a movimentação é estabelecida puramente pela câmera, ilustrando o teor da relação íntima e cúmplice de ambos. Por outro lado, há pontos negativos a destacar e um deles é o mesmo erro que Christopher comete há tempos: o tratamento pífio de suas personagens femininas, que já não são muitas. Emily Blunt interpretando Kitty Oppenheimer, esposa de Robert, está fenomenal porque é Emily Blunt. Florence Pugh é Jean Tatlock, a psiquiatra e affair do Físico, tem sua conturbada participação pouco aproveitada, e divide opiniões numa cena polêmica, ainda que sirva para demonstrar, alegoricamente, a grave exposição emocional do casal Kitty e Robert durante um inquérito forjado por vendetta. Outro destaque é Robert Downey Jr. interpretando Lewis Strauss neste que será reconhecido, provavelmente, como um dos papéis mais significativos de sua carreira. Apesar da não-linearidade no caráter do personagem não oferecer tanta surpresa, é a execução elegante do ator que garante a grandeza de sua participação. Kudos também ao coadjuvante de luxo, Alden Ehrenreich, pela conexão estabelecida, gerando ótimas interações com Downey Jr.
Christopher Nolan ergue sua escultura cinematográfica baseando-se na obra vencedora do Pulitzer (o “Golden Globes” dos literatos e jornalistas) American Prometheus: The Triumph and Tragedy of J. Robert Oppenheimer (tradução livre: Prometeus Americano: o triunfo e a tragédia de J. Robert Oppenheimer) de Kai Bird e Martin J. Sherwin, que enxergaram na imagem do titã Prometeu o caminho e destino do físico americano. Prometeus roubou dos deuses o fogo e o entregou aos homens. O resultado de sua cega lealdade foi a exposição e o sofrimento perene na forma do cruel castigo divino: Zeus, em sua fúria destemperada, o mantém cativo e envia, todas as noites, uma águia que impiedosamente dilacera o fígado do titã, que é novamente regenerado durante o dia, para que a ave retorne e o suplício nunca termine.
Assim como sobreveio ao Arjuna, no Bhagavad Gita, texto sagrado hindu que possui a célebre frase dita duas vezes no filme (uma delas de modo leviano, eu diria), o temor mortal ao encontrar-se com a real face de Vishnu, ou Prometeus, trazido da morte à vida diariamente pelo preço de suas escolhas, ambos provaram do maravilhamento da descoberta e do terror lancinante da consequência. Oppenheimer mostra o homem que seguiu o mesmo caminho dos mitos e construiu, com suas próprias mãos, um império de devastação.
Nota: 5/5
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