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Crítica | Ruptura (2ª temporada)

Foto do escritor: Hosanna AlmeidaHosanna Almeida

Capitalismo, minimalismo e ontologia — uma vida ainda é pouco?

Foto: Divulgação/ Apple TV+


Imagine que você leva uma vida tranquila, pacífica. Sem muitos problemas, confusões, ciúmes, lembranças, ansiedades, fofocas... Tudo o que há para saber sobre sua própria existência é sabido, assim como manda a realidade. Exceto que essa vida em questão é a que existe, única e exclusivamente, dentro do ambiente de trabalho. Não há antes ou depois, só o agora; o agora infindável, Repete-se, sempre, como nascer, todos os dias, um adulto. Suas funções motoras são iguais, — mas você não sabe. Sua aparência é a mesma, mas você também não sabe. Tudo o que há para saber sobre sua própria existência é sabido — você é um trabalhador. Só não sabe muito bem com o quê trabalha. Mas executa a função, às vezes apaixonadamente, às vezes acostumadamente. E tudo, absolutamente tudo o que há para saber sobre sua própria existência é sabido. Exceto quem você é. Mas você ainda existe, de fato. A sua outra (?) vida material também existe; só do lado de fora. O você de dentro (apelidado de innie — um diminutivo de in) desconhece o você de fora, o outie (o caridoso diminutivo de out). Esta incisão, a divisão da vida, não acontece por vias miraculosas. É uma escolha do funcionário da LUMON Industries, empresa do universo-Severance, mediante intervenção cirúrgica. Algumas horinhas na mesa e toda a massa disforme de problemas do trabalho, e da vida, são apartados para sempre. A problemática, no entanto, persiste: duas vidas ou uma? Duas histórias ou uma, apenas? Duas escolhas ou uma? É possível escolher? É nesse horizonte psíquico que Severance, Ruptura, em PT-BR, considerada uma das melhores séries da atualidade, encerrou sua aclamada 1ª temporada (com o melhor cliffhanger que vi em anos) no episódio The We We Are, nota 9,7 de 10 no IMDb.


O trabalho de Ben Stiller, diretor da série, de Dan Erickson, roteirista, e de toda a writer's room nesta segunda temporada, é maior. São dois desafios: o primeiro, manter o nível. Ruptura possui visuais precisos e característicos, como o jogo de motion camera que simula panorama de jogos de console, por exemplo, ou o color grading que confere a ambientação retrô-futurista (empregando, sensorialmente, a ambivalência da história) que distingue e particulariza, como este que já poderia ser o verde-Severance —alô, Pantone!—. No roteiro, o efeito críptico-enigmático da narrativa parece ser o resultado dum planejamento milimétrico: parece haver controle de saber exatamente onde mostrar, o quê mostrar, como revelar, quando revelar. O segundo desafio é, sem dúvidas, agradar quem já foi conquistado pela narrativa e pelo elenco, sem abrir mão de tudo o que envolve o primeiro desafio. Acredito, humildemente, que esta 2ª temporada está no caminho certo. E vou explicar por quê. Sem spoilers.

Foto: Divulgação/ Apple TV+


Neste sneak peak de seis episódios* que recebemos, seremos levados, no mesmo ímpeto de Mark Scout, ao andar da ruptura. Os minutos iniciais da re-imersão à série e aos dramas dos personagens nos dão o frenesi desajeitado de um reencontro esbaforido, muito similar ao que acontece com aquele amigo após três anos de distância. Um Mark S. (Adam Scott) brilhantemente exasperado sai do elevador em busca de sua innie-vida, como se poucas horas nos tivessem separado dos últimos segundos de 1x10 - The We We Are. Ruptura sinaliza pela abertura, que só será vista a partir do partir do segundo episódio, uma viagem interior mais profunda, dedicada ao cadenciado desvendar do próprio lore; espelho do mergulho existencial de Mark S. e seus colegas Helly R., Dylan G. e Irving B. entregues à nós num assombro de atuação por, respectivamente, Britt Lower, Zach Cherry e John Turturro. 


Uma conversa, aparentemente inofensiva, entre John Turturro, Christopher Walken e a participação inesperada (que alegrou meu coração de fã de Fringe) de John Noble, pincela outro tópico no universo-Ruptura, a desenvolver-se: Innies são seres humanos, afinal? Possuem salvação? O dilema religioso aterrissa sutil, acenando aos dilemas éticos que já conhecemos: há uma quantidade de pessoas, indiretas na narrativa, mas que nos chega numa forte impressão, que julga inapropriada e vê com maus olhos a cirurgia de ruptura. Temos um vislumbre da cisão social gerada pela LUMON Industries. A fissura, portanto, não é só aquela praticada pelos indivíduos dentro da empresa. Esta, talvez, é uma sociedade fraturada por pais, mães, amigos, amigas, pessoas, de todos as sortes, que possuem a intervenção corporativa em suas vidas físicas. A intervenção seria, também, metafísica? Innies possuem alma distinta? (Eu, genuinamente, espero que o dilema filosófico continue.)


E o que é a LUMON? O que fazem os MacroData Refiners, os MDR, o setor de trabalho do quarteto? (Há um discreto sinal dado ao fim do primeiro episódio que pode esquentar algumas teorias). O que faz uma empresa ao requisitar dum funcionário a sua interioridade constitutiva? O que é esta empresa que deseja lealdade incondicional e reconta a história por meio da arte: livros sagrados, fábulas místicas, condutas cultistas e lemas sintéticos e repetitivos? Quem é esta família fundadora, cuja genética indica descender ao início do mundo—tal qual os personagens do universo-Ruptura o conhecem—? Curioso é comparar, neste mistério, a pompa da empresa fictícia e a conduta das empresas atuais, ao designar grandes nomes (em inglês), que dizem menos do que deveriam, empregando importâncias vitais e sobre humanas aos trabalhos, exclusivamente, e não às vidas que os desempenham. Não ironicamente, a LUMON Industries abre uma conta no Linkedin e joga o jogo do ambiente, na rede social do emprego e da alta performance, usando as terminologias deste ethos distópico-capitalista.

Foto: Divulgação/ Apple TV+


A cinematografia segue impecável e mais polida, afiada, precisa, sem espaço para experimentações vertiginosas. A edição utiliza-se da vertigem pela lentidão, e não interprete isso como um demérito. O processo específico vivenciado —e omitido nesta crítica por razões óbvias— por Mark S. é algo que descrevo como uma ondulação sináptico-visual (e qualquer explicação além disso incorrerá em spoiler). O trato imagético oferta beleza pela simetria e proximidade, optando por planos abertos para ilustrar a grandiosidade de algumas locações, como em 2x4 - Woe’s Hollow, episódio que considero o ponto alto da temporada, dentre os seis episódios assistidos. O elenco parece ainda mais coeso, e todas as atuações fluem em seus personagens, e os innies estão “amadurecendo” em relação à primeira temporada. Importa não esquecer que os innies são adultos, mas o são de modo inaugural. É como se tivessem chegado ao mundo como são, e estão (re)apreendendo o mundo. Tramell Tillmann segue irretocável como Seth Milchick. É absurdamente prazeroso vê-lo brilhar. E seu personagem segue insondável e atrativo. Fiquem de olho nele. Há surpresas e novos personagens. 


Três pontos, em minha perspectiva, sustentam conceitualmente os seis episódios da segunda temporada: capitalismo, ontologia e minimalismo: a discussão sobre o balanço entre trabalho e vida íntima, o dilema do ser e da fratura, costurada à minúcia imagética e narrativa. E tudo, absolutamente tudo o que há para saber sobre estas existências é sabido — seja simbolicamente, pela abertura, pelas pistas inócuas de documentos vistos rapidamente, de setores surpresa descobertos, de ligações dos superiores, pelos quadros dos Kier, ou daqueles pintados por Irving B., pela junção de informações tidas na primeira temporada e agora… — nós só não sabemos quem eles, e tudo o que os rodeia, verdadeiramente, são. 


A 2ª temporada de Ruptura estreia em 17/01/2025, no Apple TV+.


Nota: 5/5



*(Apple TV+ BR, nós, aqui do OP, te amamos, mas eu confesso que tenho sérios problemas de ansiedade que podem ser atestados em laudo, e por isso rogo-vos igual à Melody: mulher, libera!)

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