Drama distópico se ancora (eficazmente) no poder do mistério e da atuação de Rebecca Ferguson
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Desde que Platão concebeu o Mito da Caverna, seus pressupostos têm sido (re)interpretados e aplicados nos mais diversos contextos e culturas. Pensando mais especificamente na cultura pop, podemos citar obras literárias como A Ilha e Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, e obras cinematográficas como O Show de Truman e Matrix – narrativas sobre personagens que questionam a realidade ao seu redor e percebem que ela não passa de uma “sombra” daquilo que é verdadeiro, precisando combater aqueles que desejam que essas sombras permaneçam como a única realidade possível e os que ainda não estão prontos para ver a luz.
Silo, série do Apple TV+ baseada na saga literária homônima de Hugh Howey, vem para se juntar a esse filão. Criada por Graham Yost (showrunner de uma das minhas séries favoritas, Justified), ela acompanha o Silo homônimo, que parece o último refúgio da humanidade num futuro pós-apocalíptico. O lugar é marcado por uma estrita hierarquia e controle social, mas tal controle começa a falhar quando diversos personagens – em especial Juliette Nichols (Rebecca Ferguson), uma engenheira que trabalha nos níveis mais baixos do silo – começam a desconfiar de que o mundo lá fora não é como eles pensam.
Apesar de Juliette ser claramente a protagonista da série, Silo toma uma decisão ousada de não mostrá-la até os minutos finais do primeiro episódio. É como se este fosse um grande prólogo para a temporada, enfocando em Holston Becker (David Oyelowo), xerife do silo, e sua esposa Allison (Rashida Jones), que trabalha no departamento de TI. Ao nos introduzir (e nos afeiçoar) primeiramente a esses personagens, a série nos introduz aos elementos básicos da vasta mitologia aqui adotada, mas também exibe uma imprevisibilidade que se estende firmemente ao longo da temporada, mas especialmente em seus primeiros episódios, conforme personagens caem e outros emergem e ninguém está a salvo.
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Na verdade, Silo toma tantas direções no decorrer da temporada que é fácil se perder – especialmente porque, sendo uma primeira temporada, as perguntas são mais comuns que suas respostas. Se isso não acontece, é porque o elenco consegue nos causar um devido impacto mesmo quando aparece pouco. Jones, uma atriz que eu estava mais habituado a ver em papéis cômicos, traz uma faceta trágica no primeiro episódio que acaba se provando a catalisadora de todos os eventos subsequentes, enquanto Will Patton, como o xerife-assistente Will Marnes, e Geraldine James, como a prefeita Ruth Jahns, fornecem uma base humana à protagonista. Já Tim Robbins e Common, exercendo os papéis mais antagônicos, provêm uma dimensão substancial aos mistérios e intrigas que permeiam o Silo.
Mas é Rebecca Ferguson, na condição de heroína relutante, quem toma a série para si a partir da sua primeira aparição. O termo “protagonista feminina forte” soa quase pejorativo de tão vazio que é, mas Ferguson imprime uma força física e emocional que garante que ela domine cada cena em que aparece, criando um arco crível para Juliette, que cresce mais e mais a cada episódio mesmo quando perde seus (poucos) aliados e se vê lutando contra o mundo.
Essa construção dos personagens, mesmo dos secundários, dá um toque próprio a Silo. Sim, ela passa longe de ser inovadora: diversas outras obras distópicas/pós-apocalípticas seguiram premissas parecidas que remontam ao já referido Mito da Caverna. De fato, a construção do silo me lembra por demais a cidade de Zion nos filmes de Matrix, ainda que há de se elogiar o trabalho soberbo da direção de arte e da fotografia na construção e ambientação deste universo. Mas é ao investir no drama humano e dar espaço a esses personagens em sua narrativa (mesmo que às vezes à custa do ritmo) que a série se sobressai.
A primeira temporada de Silo não oferece as respostas de todas as perguntas que levanta e nem sempre acerta no seu ritmo. Contudo, poucas séries recentes foram tão eficientes em apresentar mistérios que instiguem seu público, sem esquecer dos personagens que são afetados por esses mistérios. Com uma segunda temporada já confirmada (e precisamos dela, depois daquele final), a série tem tudo para ser um novo sucesso do Apple TV+. Goste você de um bom drama ou de um mistério, há de ambos em boa dose aqui para lhe proporcionar uma das experiências televisivas mais intrigantes do ano.
Nota: 4/5
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