O som em primeiro plano – ou quase.
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Audiovisual é uma palavra simples, composta pela justaposição de dois radicais bem comuns no nosso vocabulário. Ainda assim, quando falamos de obra audiovisual, tendemos a menosprezar a importância da primeira parte do vocábulo, nos atentando ao visual da coisa. Ao contrário daquele take perfeitamente iluminado que dá vontade de emoldurar, o áudio tende a passar despercebido para o espectador comum.
Não é bem culpa nossa, da audiência. Nos tradicionais cursos de cinema somos ensinados que os melhores áudios diegéticos (que difere da trilha sonora) são aqueles “invisíveis”, isto é, que não se fazem perceber. São parte da obra, contribuem para a narrativa, mas não se sobressaltam e, em geral, nem devem se sobressaltar.
Em geral.
Seja por motivos metalinguísticos ou pela própria proposta narrativa, alguns filmes quebram essa “regra”, colocando efeitos sonoros em destaque e evidenciando o sentido auditivo do espectador. Pode oferecer um estranhamento inicial, mas costuma ser uma experiência encantadora. É o caso, por exemplo, dos filmes Cantando na Chuva (1952), Os Pássaros (1963), Um Lugar Silencioso (2018) e O Som do Silêncio (2019). Tinnitus, dirigido por Gregorio Graziosi e premiado no Festival de Gramado, é o mais novo acréscimo a esta lista.
Marina (Joana de Verona), promissora atleta de saltos ornamentais, sofre da doença que dá nome ao título do longa. Ela possui uma hipersensibilidade auditiva que ocasiona um zumbido, como se houvesse um “grilo”, como a mesma descreve, em seu canal auditivo. O excelente trabalho de som e mixagem, assinados por David Boulter e Fábio Baldo, nos coloca dentro da cabeça de Marina, compartilhando seu tormento. O grave é amplificado, as variações sonoras, distorcidas, e o chiado é constante. Tinnitus é, antes de tudo, um drama sensorial com pitadas de thriller.
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A aflição e agonia incessante prejudicam a carreira de Marina, a afastando dos trampolins – mas não das piscinas: anos depois de um acidente em plenas Olimpíadas do Rio, Marina está trabalhando como sereia num aquário. Além disso, visita um grupo de apoio para os que sofrem da mesma condição que ela, coordenado pelo seu marido e otorrinolaringologista (André Guerreiro Lopes), que não consegue bem definir as fronteiras entre consultório e lar. A doença – e, por consequência, a vida – estão administradas.
Até que o esporte volta, pouco a pouco, à vida de Marina, que se deixa levar. Ela retoma contato com sua técnica, suas visitas ao centro esportivo se tornam frequentes, e, eventualmente, conhece Teresa, que ocupa seu lugar na dupla que antes fazia com Luísa. A protagonista, então, se vê presa num emaranhado de tensões – seja a rivalidade no esporte, seja as mentiras que deve contar para continuar sendo boa esposa/paciente, seja os jogos de desejo e sexualidade, seja sua própria vontade de voltar aos saltos. Tudo isso emoldurado pela caótica e barulhenta São Paulo, que, como sua arquitetura linear e rígida, distintamente capturada por Rui Pocas, abarcam o senso de solidão e melancolia da personagem.
Não sei se, a essa altura, já havia me acostumado com o incômodo auditivo ou ele esse aspecto voltou ao segundo plano, mas certamente esqueci dele. Uma pena, porque o diferencial do longa é justamente a perturbação causada pela doença (na personagem e em nós) – e esta se perde no meio da história para dar lugar a tantas subtramas que, infelizmente, não nos cativam. Parecem incompletas ou súbitas, se não preguiçosas. Entendo a tentativa dos roteiristas Marco Dutra e Andres Vera, além do próprio Graziosi, de construir um mistério que nos leve até o (por sinal, ótimo) desfecho final, mas, na prática, funciona mais como uma dispersão que só leva a nos perguntarmos quanto tempo ainda falta.
Tinnitus é um filme com uma excelente premissa, uma ótima execução e uma fraca dramaturgia. Na balança, é uma experiência válida, especialmente para quem tem a oportunidade de assistir numa sala de cinema e brincar com a alteridade única que o filme trás.
Nota: 3/5
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