Diretora brasileira destaca as inspirações para o seu novo longa, que inverte os papeis de gênero na sociedade
Foto: Divulgação
Uma história onde, em um mundo imaginário, os estereótipos de gênero são invertidos e mulheres ocupam posições de poder enquanto os homens são criados para serem socialmente submissos. Essa é a trama principal de O Clube das Mulheres de Negócios, novo filme da diretora Anna Muylaert, que chega aos cinemas nesta quinta-feira, 28. Responsável por sucessos do cinema brasileiro como Durval Discos (2002) e Que Horas Ela Volta? (2015), Anna conversou com exclusividade com o Oxente, Pipoca? e falou sobre as inspirações para o seu novo longa, projetos futuros e cinema brasileiro.
A história de O Clube das Mulheres de Negócios para Muylaert surge através do cansaço de perceber o tratamento feminino comparado com o masculino. “Depois, houve uma abertura de olhar para essa questão e a temática da inversão começou a aparecer no teatro, no cinema e na internet. Eu quis usar essa ideia da inversão, mas tratar além da misoginia e do machismo, trazendo outros aspectos do patriarcado que também são tóxicos como a questão de classe e a questão ambiental”, explica.
Desde os pôsteres até os minutos finais do longa, a linguagem visual marcante é um dos pontos mais chamativos para a história e a inspiração de Anna e sua equipe surge por meio de signos culturais fortes no imaginário brasileiro . “A gente se inspirou no modernismo, em Tarsila do Amaral e no Carnaval. Essas cores e flores vão na contramão do que está acontecendo no filme, mas utilizamos isso para mostrar esses personagens que são arquétipos nossos. Não vamos ser educados, vamos explodir e fazer esse filme que também tem um quê de carnaval”.
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Além da presença desses signos, outro símbolo constante da brasilidade se faz presente na linha narrativa da história: a fauna do nosso país, através da onça. “No início, o filme era só uma comédia assim dramática de inversão dos papeis de gênero de uma situação de uma mulher, mãe solteira, que no caso seria um homem, em situações familiares e empregatícias. Aí eu tive um sonho com o ator que ia fazer esse essa primeira versão do filme e tinha fugido uma onça num jardim e isso gerava um medo, fiquei achando que era algo muito bom para ser usado naquela primeira versão do roteiro. Também fui vendo o quanto a onça significa aqui na América Latina e na América do Sul e o quanto a onça está ameaçada, o número de onças hoje no Pantanal, eu acho que é cerca de 2.000 indivíduos. É um animal que está sendo muito maltratado. Logo em um dos primeiros tratamentos do roteiro que eu estava fazendo, ocorreu um incêndio no Pantanal e lembro que vimos umas imagens de onça com a patinha machucada, muita coisa foi aparecendo no noticiário e a partir disso houve a criação ficcional que fortaleceu esse símbolo”, reflete Anna.
Denúncias também parecem ser uma linha narrativa importante nas tramas dirigidas por Muylaert. E se em Que Horas Ela Volta? ela nos faz refletir através do afeto pela protagonista, em O Clube das Mulheres de Negócios a reflexão surge por meio do repúdio e da repulsa que sentimos ao acompanhar as mulheres da história. “Esse filme veio de um lugar que nenhum outro filme meu tinha vindo, veio da raiva. Se você parar pra pensar no “Que Horas”, em 2015, era um momento de celebração, tínhamos a possibilidade de uma democracia social no Brasil. Mas em 2016 tem o golpe e aí começa a acontecer uma fase em que a gente sentia muita raiva e o filme vem dessa raiva”.
“Pra mim, como diretora, era importante de algum jeito quebrar com expectativa de repetição do “Que Horas”, sabe? Eu não tenho como repetir aquilo e não quero que as pessoas esperem isso de mim porque se não é como se eu estivesse morta. Então também tem um lugar dentro de mim, mais rebelde, que fala: eu não sou só isso. E eu queria quebrar isso com respeito. Se a pessoa vai ver O Clube das Mulheres de Negócios procurando algo do “Que Horas”, ela não encontra. Eu acho que tinha esses dois lados e essa questão pessoal, minha mesmo, de me livrar da obrigação de repetir o sucesso do filme anterior”, reflete a diretora.
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Sobre as protagonistas do filme, Muylaert destaca a personagem Zarife, interpretada pela comediante Katiuscia Canoro. “Ela é a personagem que vai mais longe no delírio. Tivemos uma estreia no Rio e o empresário dela estava lá e ficou encantado, dizendo que era o melhor trabalho da vida dela, tirando ela dessa caixinha de comédia televisiva e vendo o potencial dela como uma atriz dramática. Eu acho ela incrível e amei trabalhar com ela. Ficamos muito amigas”.
Voltando ao contexto das denúncias, Anna Muylaert explica que o seu principal objetivo com o filme é, de certo modo, alfinetar o público. “Acho que levantar discussão, sem dúvida, é uma coisa muito positiva. Porque eu acho que essa essa linha, esse desenho da educação de gênero é algo que é tão automático na gente, que não sabemos nem de onde vem. Então trazer essa consciência é algo muito positivo e importante. Do outro lado acho que ele também causa catarse de algum jeito. Acho que a personagem da Katiuscia se enfiando no mato, pelo menos a mim, causa uma catarse a um nível delirante. Eu acho que é catarse e debate mesmo. E consciência também, né? Eu acho que o que aconteceu com a Cristina Pereira no Festival de Gramado reflete isso”, conta.
O fato que Muylaert se refere na resposta anterior foi ao relato da atriz que interpreta a personagem Cesárea. Cristina Pereira surpreendeu, em um debate após a primeira exibição do filme O Clube das Mulheres de Negócios em Gramado, ao revelar ter sido vítima de abuso sexual durante a infância. A atriz de 74 anos, com uma vasta carreira no cinema e na TV, nunca havia falado publicamente sobre o tema. Na ocasião, ela desabafou: “É a primeira vez que falo publicamente isso. Aconteceu isso comigo. Tá acontecendo agora com uma porção de meninas. [...] Eu era uma menina de 12 anos, entrando na puberdade, eu nem tinha ficado menstruada. Eu não sabia nada sobre sexo, eu não sabia o que aquele homem tinha feito comigo. É uma coisa horrível. [...] Quando o [personagem] Candinho chora, sou eu que choro, são vocês que choram e são muitas meninas de 12 anos como aquela menininha, que estava indo para a escola, de uniforme”, confidenciou a atriz para o público presente em Gramado.
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Sobre o assunto, Anna Muylaert completou que temas como abuso sexual, muitas vezes, são silenciados pela sociedade. “Ela ficou 50 anos com uma coisa engasgada e de repente encontrou, com o filme, a oportunidade de falar e se sentir acolhida. Esse tema é um grande tabu e, de alguma maneira, o filme já trouxe essa luz, descongelou essa parte que estava congelada de trouxe um assunto muito importante de ser dito é muito difícil de ser falado. É um ganho muito positivo em cima do filme quando a gente pensa que esses assuntos nem eram discutidos. A cena do Rafa Vitti e todo aquele arco, eu acho que vai abrir muita discussão para isso. Quando viralizou o vídeo da Cristina em Gramado, tinham posts com quase 15 mil comentários, quase todas as mulheres que comentavam falavam que haviam vivido algo parecido. Poxa, 15 mil mulheres vão para a internet compartilhar seus casos a partir da fala da Cristina. Há uma necessidade de falar e não há onde falar, eu acho que talvez muitas mulheres sintam entendidas, acolhidas, de uma certa forma, de terem vivido experiências compartilhadas próximas às de O Clube das Mulheres de Negócios”, disse.
Mergulhando no tema do cinema brasileiro, destaco para a Anna a exibição do longa no primeiro dia do Festival de Artes de São Cristóvão, em Sergipe, de forma gratuita, nesta sexta-feira, 29, e a pergunto sobre a sensação em relação ao cinema nacional em um momento onde o filme mais visto do país é um longa do país, superando grandes blockbusters.
“Quando eu comecei no cinema brasileiro, ele foi assassinado pelo Collor, né? Ficou quase uma década sem produção, depois eu vi a retomada acontecendo a partir do final dos anos 90 que foi um momento florescimento, nascimento e estabilização da produção. Depois teve o impeachment da Dilma e tivemos uma paralisação, a entrada dos streams, que foi uma mudança de paradigma. E aí, esse ano, todos os números do cinema brasileiro foram muito baixos, foi um ano bem desanimador, no geral. E agora com a estreia do filme do Walter e também com Arca de Noé indo bem, eu acho que é um momento de otimismo, mas a gente precisa ver como é que isso vai se comportar, se isso vai ser uma exceção ou uma tendência, né? Vamos ver, eu não sei dizer. Mas de maneira geral, após a pandemia, houve uma diminuição do público, nas salas no Brasil e no mundo e parece que a gente está se encaminhando para um outro tipo de vida mais dentro de casa, né? Mas nessa semana há um otimismo no ar. Acho legal, por exemplo, quando existem essas exibições locais assim, porque eu acho que atrai um público diferente e isso me deixa muito feliz”, reflete.
Acerca dos próximos projetos, Anna adianta algumas informações. “Em 2025 vou lançar “A Melhor Mãe do Mundo”, que escrevi na pandemia, que é bem diferente desse filme, ele é bem amoroso, lírico, sobre uma mãe carroceira que larga o marido abusivo e bota os filhos na carroça e vai do Glicério até Itaquera com os filhos, é uma espécie de road movie em São Paulo. E no meio do ano começo a rodar “Geni e o Zepelim”, na Amazônia. Depois, vou dar uma pausa de um ano e vou tirar um ano sabático e descobrir o que quero fazer”.
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