Diretor do longa de terror brasileiro conversa sobre referências, cinema nacional e as violências que permeiam suas histórias
Foto: Divulgação
“Um filme que evoca uma violência histórica no Brasil”. É assim que o diretor Davi Pretto define Continente, longa lançado em 31 de outubro em vários cinemas pelo país. Escrito também por ele, em parceria com Igor Verde e Paola Wink, a trama se passa no interior gaúcho e o local foi ponto de partida para a criação da história. “Numa relação de um encontro eu conheci o Igor em 2017 e a gente virou amigo desde então. Eu estava querendo desenvolver um projeto novamente no Pampa gaúcho, onde eu tinha acabado de filmar meu outro longa, Rifle, e mesmo ele sendo carioca, o Igor tinha um interesse pelo Pampa e a gente começou a desenvolver um roteiro juntos, que não era o Continente. Terminamos esse roteiro, que nunca foi produzido, e logo em seguida começamos a escrever Continente, desde 2018. Em dado momento a Paola se juntou a nós, porque foi um processo muito longo. Tudo surgiu do interesse em comum de fazer um filme que explicitar como essa região significava pra gente”, explica Davi, em entrevista exclusiva para o Oxente, Pipoca?.
“Então esse espaço [dos Pampas] como um espaço que significa muita coisa. Foram quatro anos de escrita e muita coisa aconteceu nesse meio tempo, mas mas mas partiu um pouco desse interesse e tinha muito essa imagem na nossa cabeça dessa casa de fazenda essa casa colonial como um símbolo desse sistema de violência e essa relação com esse espaço que sempre existe nessas nessas regiões que é esse vilarejo, é quase como se uma imagem precisasse da outra, porque isso é uma coisa que tu vê repetidas vezes quando viaja no interior. Esse sistema de violência, que para existir, precisa produzir violência”, relata o diretor.
Foi durante o processo de escrita que os roteiristas de Continente perceberam que o realismo não era mais suficiente para contar a história. “Eu sempre tive uma relação meio peculiar com o realismo. Nos meus filmes, Castanha e o Rifle, o realismo é um pouco estranho e tem um pouco do fantástico, sempre dentro do realismo. Em Continente nos demos conta, mais frontalmente, que a gente precisava explorar outros lugares conseguir dar conta do que queríamos nos debruçar e daí o gênero meio contaminou o filme dentro dessa proposta de uma divisão também, porque eu acho que isso em um determinado momento nos pareceu muito claro: que o filme se revelaria também para o próprio espectador, assim como ele se revelou pra gente”.
“Quando estávamos escrevendo, nunca pensamos muito em referências como balizas. Acho que na escrita o processo era muito mais de debate sobre para onde esse tema nos levava. Eu, o Igor e a Paola também produzimos uma série documental chamada Voz da Pele da EBC, sobre o passado escravocrata do Brasil até os tempos de hoje, no mesmo momento que estávamos desenvolvendo o roteiro de Continente e isso reverberou no roteiro pensando na questão dessa herança de violência e de como isso ainda permanece. Mas na verdade, acho que durante a feitura do filme, o cinema que eu gosto e consumo aparece através da minha cinefilia também”.
No centro do filme, como protagonista da trama, está a atriz Olívia Torres, que começou a sua carreira na TV muito jovem, ganhando destaque em Malhação ID, em 2009, da TV Globo. De lá pra cá, Olivia integrou o elenco de muitas novelas da emissora e fez parte de muitos filmes, mas nada como Continente. “Muito da vida assim, né? Como muitas coisas nos meus filmes já aconteceram assim. Eu sempre acredito que, algumas pessoas chamam de destino, outras chamam de sincronicidade, algumas coisas que vão acontecendo. A Paola conheceu a Olívia trabalhando em um outro projeto, em uma sala de roteiro só com mulheres, e lá estava a Olívia. Ela saiu dessa sala e ela me disse: Davi, eu acho que eu conheci a Amanda. E ela nem sabia que a Olívia era atriz, pensava que ela era roteirista, depois a gente começou a olhar o Instagram e vimos que ela era atriz. Nós nos falamos e nos demos super bem e foi quando ela me falou que tempo estava procurando um projeto que desse essa possibilidade de explorar essa monstruosidade através do corpo dela. Então também foi para ela um encontro muito de sincronia, porque era o tipo de projeto que parecia que ela estava se preparando para fazer”, completa Davi.
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Davi explica que desde que se tornou cineasta, a temática da violência sempre aparece, de alguma forma ou de outra, em seus filmes. “Eles abordam diferentes diferentes faces da violência, né? Às vezes é uma violência mais silenciosa, às vezes uma violência mais direta, por exemplo. É um tema que me move muito, porque eu acho que a violência explica muito da sociedade que a gente vive e é um tema muito duro, da gente olhar para ele, porque a gente gosta de se afastar desse tema. Gostamos de achar que a gente não tem a ver com isso, que é sempre o outro, mas eu gosto de pensar que as violências que existem dentro da gente”.
Em nossa conversa, destaco que Propriedade (2022), do Daniel Bandeira, retrata temáticas parecidas com Continente como problemas sociais, luta de classes e relações de trabalho, mas, com uma abordagem totalmente diferente. “Foram filmes que provavelmente foram gravados ao mesmo tempo em que não sabíamos da existência um do outro. Acho muito positivo termos filmes sobre o campo, tal qual os anos 60 e 70 do cinema brasileiro, e de como o campo como esse interior profundo pode falar ou evocar esse Brasil que é tão complexo. Então, eu faço um coro a esse tipo de filme porque foram um filmes que também me marcaram muito e que ficaram marcados na história do cinema brasileiro. E talvez por isso eu me debruce tanto sobre esse sobre esse espaço que é também espaço gaúcho”, reitera.
Sobre o cinema nacional, Davi destaca a importância de filmes fora do eixo do sudeste. “Eu acho que a gente conhece tão pouco do nosso cinema, né? É uma dominação da cultura paulista-carioca no nosso imaginário. Vemos tão poucos filmes daqui do sul, norte e nordeste nas grandes telas, inclusive no que diz respeito aos sotaques. Eu lembro quando eu passei o Rifle em um festival em Brasília, que é um filme todo falado e todo interpretado por pessoas do Sul do Brasil, do interior, algumas pessoas queriam que tivesse legenda. Críticos cariocas e paulistas queriam que tivesse legenda e eu falei: vamos só acordar aqui entre todos nós quem vai precisar de legenda nesse Brasil. Legendas para filmes que não são do Rio e de São Paulo, né?”.
“Eu acho que a gente parou de ouvir outras vozes e outros sotaques. Eu fico muito feliz quando os filmes viajam, quando a gente faz um filme no interior do Sul e ele passa em Sergipe ou passa em Pernambuco, por exemplo. Porque eu acho que isso mostra que a gente ainda tem muito a trocar e eu espero que siga assim. Continente é um filme com um elenco muito amplo, com elenco de São Paulo do Rio, mas também um elenco muito Gaúcho, um elenco argentino, um elenco francês, porque eu acho que a gente entendia e a equipe técnica também era muito plural, de todos os cantos.
“Todo mundo estava colocando um pouco do nosso olhar sobre o Brasil naquele microcosmos daquele vilarejo no Sul do Brasil, um lugar que não tem nome, que não é localizado, mas que a gente acredita que a gente podia, talvez, falar sobre algo que uma pessoa de Sergipe pudesse se reconhecer ali ou pensar que aquilo ali não é muito diferente da sua realidade ou a uma pessoa de Manaus. Ainda sobre o assunto, Davi enfatiza: “A gente ainda tem muito a aprender uns com os outros no cinema brasileiro e com quem faz cultura no Brasil e a gente precisa se ver mais, se ouvir mais”, conclui.
Confira nossa crítica sobre o filme.
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