Cristiane Oliveira conta sobre a influência do cenário político na criação de sua história
Foto: Gustavo Galvão/ Divulgação
Estreou na última quinta-feira, 3, o drama Até que a Música Pare, terceiro longa-metragem da cineasta gaúcha Cristiane Oliveira. Na trama, somos apresentados a Chiara, matriarca de uma família de descendência italiana que vive no interior do Rio Grande do Sul. Depois que o último de seus filhos sai do lar para morar sozinho, ela decide acompanhar o marido em uma de suas viagens a trabalho para não ficar só em casa. Alfredo, que trabalha fornecendo produtos de bar em bar pela estrada da Serra Gaúcha há anos, é acompanhado pela esposa. Juntos entre botecos e rodovias, uma descoberta inquietante sobre a vida que Alfredo vive na estrada, envolvendo baralhos de carta, notas fiscais e até uma tartaruga, colocará à prova a confiança e o que eles sabem um do outro.
Em entrevista exclusiva ao Oxente, Pipoca?, a diretora Cristiane Oliveira conversou sobre o processo criativo, as peculiaridades culturais abordadas no filme e sobre como o cenário político brasileiro influenciou o surgimento da história, que surgiu após uma conversa com uma amiga.“Tudo começou a partir de uma reflexão minha acerca dos escândalos éticos da política nacional, eles me fazem pensar nas nossas corrupções cotidianas e eu estava vivendo um momento assim de me questionar muito sobre quais são os limites da nossa tolerância, né? Quando eu ouvi uma história de uma amiga que falava sobre uma um fato que aconteceu com seu avô, um fato que aconteceu na família dela e que a família ficou muito preocupada ao descobrir que o avô, que era um comerciante, vendia um dos seus produtos sem nota fiscal, a partir daí perguntei a ela se podia escrever sobre isso”, relatou Cristiane.
Ainda sobre o roteiro, a diretora conta que começou a desenvolver a história fazendo um paralelo com o cenário nacional. “Se na democracia o tamanho do crime importa para os seus julgamentos, no amor, será que isso importa também? Esse foi o meu questionamento inicial e assim, comecei a desenvolver a história dessa senhora, a Chiara, que descobre as maracutaias do marido, mas, que também guarda um segredo. Isso trouxe questões ligadas à religião e a laços familiares rompidos, uma questão que, para mim, se fortaleceu com as eleições de 2018. Muitos filhos tiveram laços quebrados pela impossibilidade do diálogo. Quando começam a vir à tona discursos de ódio, discursos contra os direitos humanos, algo novo para mim começa a acontecer ali que é a invocação de Deus como justificativa de violências na política. Então, já existia no roteiro esse paralelismo da situação ética nacional com a situação íntima da família, porém, a partir de 2018 essa ligação com a religião fica mais forte no cenário nacional e na trama do filme também”.
Para Cristiane, o momento que o Brasil viveu em 2018 é uma fissura dolorosa na nossa história e que é preciso estimular o diálogo para superá-lo. “É preciso entender o universo do outro, precisamos seguir dialogando para que ambos os lados sejam depurados e ouvidos. De certo modo, é muito reconfortante a ideia de fazer parte de um grupo e buscar conhecimento, buscar informação, gera trabalho. Então, eu acho que a gente vive um momento que se torna cada vez mais necessário estar atento a disseminação de desinformação e como isso quebra laços que são importantes”, relata.
Foto: Divulgação
Já acerca da construção dos protagonistas, Alfredo e Chiara (Hugo Lorensatti e Cibele Tedesco), que são um casal da terceira idade, a diretora explica que ocorreu um processo colaborativo entre a vivência dos atores e dos diálogos e da conexão que ela criou com as pessoas da comunidade que possuíam a mesma faixa etária dos personagens. “Foi muita escuta e de permitir que essa realidade permeasse a minha escrita. Ao mesmo tempo, tem uma uma expressão que a Cibele usa que eu gosto muito. Ela prefere chamar de terceira adolescência ao invés de terceira idade. Então, eu acho que é essa sensação de transformação, de entrar numa outra etapa da vida, algo que pode acontecer em qualquer idade”. Além dessa identificação, Cristiane também conta que é necessário olhar para essa faixa etária sem nenhum tipo de preconceito. “Temos que ter consciência que eles também são capazes de aprender e nós de ensinar, precisamos abrir essas brechas intergeracionais e olhar para essa terceira adolescência, tendo, sem dúvidas, ideia das limitações de mobilidade ou cognição. Nós não podemos perder essa vontade de dialogar”.
Um dos pontos mais interessantes de Até que a Música Pare é o talian, dialeto que nasce de uma mescla entre o português e o italiano, muito presente no interior do Rio Grande do Sul, que é falado durante quase todo o filme. O dialeto foi, recentemente, reconhecido pelo Inventário Nacional Da Diversidade Linguística e faz parte de um processo multicultural existente no estado gaúcho. Sobre o talian, Cristiane teve o seu primeiro contato com a língua na região em suas primeiras pesquisas para o roteiro. “Quando vi que muitas pessoas de uma faixa etária mais avançada falavam em talian, eu achei que deveria trazer essa língua histórica para o filme. A partir daí, a gente passou por um processo de reestruturação do que já estava escrito, contamos com a ajuda do ator Hugo Lourenço, depois o texto passou por uma consultoria feita com duas pessoas que participaram da produção da primeira gramática do talian, impressa graças a lei Aldir Blanc. O resultado final foi algo muito rico para história, além de ser um processo de muito aprendizado que se deu de uma forma muito natural”, explica.
Além do talian, outra expressão cultural importante para o filme é o cenário interiorano do sul. “Essa cultura tem a religiosidade católica como pilar e isso fica evidente, inclusive, na arquitetura. E isso tudo colabora para a construção da narrativa da história dessa família. O Nicolas, ator italiano que faz parte do filme, não sabia que existia esse pedaço da Itália no Brasil, essa semelhança o chocou, tanto pelo desenho da geografia, como pelo desenho urbano. Ele ficou encantado como ele falava em italiano e era compreendido”, declara Cristiane.
Pensando sobre esse aspecto, Cristiane compreende que filmes que retratam uma realidade local criam uma identificação ainda maior com o seu público. “Nas experiências de pré-estreia com esse filme muitas pessoas vieram conversar com a gente extremamente comovidas porque elas reconhecem suas histórias nesse filme. E isso se passa com diversos longas que são produzidos pelo Brasil todo, então a regionalização dos recursos nacionais é algo extremamente importante, assim como políticas locais de fomento para que essas realidades diversas possam seguir vindo para as telas e para que a gente tenha condições também de conseguir chegar na população e para isso a gente também precisa de cotas de manutenção da cota de tela, manutenção do fomento para distribuição também, porque é muito injusta a desigualdade de investimento em publicidade que o cinema nacional tem em relação a filmes internacionais. Muita gente nem fica sabendo que os filmes existem com excesso de produção hoje em dia e muitos títulos saem das salas já na segunda semana, nem dando tempo das pessoas saberem que estava em cartaz um filme que diria muito sobre elas”.
Cristiane finaliza dizendo que gostaria que Até que a Música Pare se tornasse ferramenta para discussão das dificuldades do diálogo em família. “Em especial questões que dizem respeito às diferenças e ao respeito a essas diferenças que o filme levanta. Essas questões não são fáceis de responder porque depende da trajetória de cada um. E eu acho que o caminho é esse. A gente seguir tentando dialogar sobre tudo isso”, conclui a diretora.
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