Uma conversa sobre adolescência, saúde mental e cinema nacional
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Um dos meus subgêneros de filme preferidos é aquele que retrata a adolescência de maneira crua e abraçando todos os problemas da fase. Longas como Aos Treze (2003), Diário de um Adolescente (1995), Oitava Série (2018) e How to Have Sex (2023) me obrigam a continuar sentada, digerindo, muitos minutos após os créditos rolarem e voltam à minha mente com uma constância mais frequente que muitos outros.
Vejo a adolescência como período que encapsula e potencializa os sentimentos mais humanos. O colorido é mais saturado e o preto e branco muito mais cinza. O amor vira obsessão e a chateação, ódio. Quando uma história consegue utilizar dessa ebulição para fazer refletir sobre nós mesmos, em qualquer idade, é muito precioso.
É o caso de Meu Casulo de Drywall, suspense de Caroline Okoshi Fioratti que estreou nesta quinta (12), após ser o único representante do cinema nacional na SXSW 2023, nos EUA. Estrelado por Bella Piero, Maria Luísa Mendonça, Daniel Botelho e Michel Joelsas, além de contar com uma participação de tirar o fôlego de Caco Ciocler, o filme aborda a solidão, o luto, os exageros e as pressões de crescer. O casulo do título se faz bem representado pela limitação espacial: no espaço físico, toda a trama se passa dentro dos muros de um condomínio de luxo da capital paulista; já no espaço temporal, somos limitados a vivenciar, junto aos personagens as 24 horas entre o início da festa de aniversário da jovem protagonista até a noite após sua morte.
O Oxente, Pipoca? teve o prazer de conversar com a diretora e o elenco do filme, na entrevista exclusiva abaixo.
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Aianne: Caroline, vi que demorou 10 anos desde a concepção até finalmente o filme chegar no cinema. Como esse tempo ajudou a aprimorar a ideia até a obra final?
Caroline: Eu acho que foi muito importante porque teve também o amadurecimento de um assunto que é muito denso e complexo. A gente, como sociedade, também amadureceu em compreender o assunto e como falar sobre ele.
O tempo todo, desde a concepção, do início do roteiro e até o final da montagem, a minha preocupação era estar sempre em constante atualização para conseguir, de alguma forma, estar alinhada com a OMS e com todos os órgãos que estudam como falar sobre as questões do suicídio e da saúde mental. Também parti muito de conversas que eu tive com adolescentes por conta de um curta-metragem, e eles trouxeram para mim conflitos que retrato nesse filme.
E eu acho que também é um filme que eu vivi junto durante o meu amadurecimento como cineasta. Eu comecei a escrever quando nunca tinha dirigido nenhum longa-metragem e agora estou lançando, depois de ter feito alguns comerciais no meio. Então, eu acho que ele vem muito com uma pulsão minha de querer fazer um filme que fale da maneira e do tom que eu me sinto como pessoa.
Eu sou uma pessoa mais melancólica, sempre fui. Aprendi a colher essa melancolia, e eu acho que o filme mostra um pouco isso: no momento em que a imagem é muito importante – em que se mostrar feliz, se mostrar bem-sucedido é muito importante –, falar “eu posso colher a minha dor, eu posso colher a minha melancolia”.
Eu queria fazer um filme porque filmes assim me acolheram quando eu era adolescente, quando eu tinha as minhas dores. Então, eu espero que esse filme de alguma forma fale para o jovem “olha, eu estou discutindo, eu quero dialogar com você, eu entendo que você tem dores e você não está sozinho”. Acredito muito em falar de forma honesta, sincera com o jovem de hoje, porque eles esperam isso.
Aianne: Você falou honesta e sincera, eu acho que também uma palavra boa seria responsável. Porque a gente tem muitos exemplos de obras da cultura pop mesmo que tratam de suicídio de uma maneira totalmente irresponsável, às vezes até glamourizando, romantizando essa questão. E o filme não faz isso de jeito nenhum. Ele mostra realmente o impacto das dores que devem estar envolvidas e de outras pessoas ao redor quando chega nesse ponto. Parabéns por essa preocupação.
Caroline: Obrigada!
Aianne: Maria Luiza, falando em psicológico, acho que as suas cenas são as mais intensas ao longo do filme, porque sua personagem vai vivendo o luto até quase chegar no ponto de loucura. Qual dessas cenas foi a mais difícil, mais impactante de gravar? E houve algum preparo, algum exercício para você conseguir lidar com essa experiência?
Maria Luísa: Eu acho que o que aconteceu foi que tinha um set muito estruturado para que eu me sentisse muito segura de estar dançando com a história, com tudo que eu tinha me preparado e com todos que estavam ali. E essa sintonia com o elenco e com a Carol foi fundamental.
Eu acho que me preparo muito para o acaso, sabe? É assim que eu trabalho. Eu fico ali disponível, aberta e disponível com o meu dever de casa feito. E eu acho que a gente conseguiu isso com todo mundo, todo mundo estava brilhando. A equipe, o elenco, todo mundo. Então, acho que tudo isso vai para a cena.
E eu voltei para casa bem! Eu tenho essa sensação: Eu acho que a arte me cura. Quando eu vou em lugares muito difíceis, eu sei que é construção, e isso é libertador. É isso, é construção, é escuta e é justamente o que o filme está ali pedindo. Onde está essa saúde mental, os sintomas que são tão difíceis de se perceber? O que é esse autoconhecimento? É a gente poder perceber, a gente falar que “é difícil, a gente é faltante, a gente é bom, mas é ruim, a vida é curta, a gente vai morrer”? Tudo isso é difícil.
E fechando, eu acho que quando você fala que ela vai para a loucura, para mim é uma sublimação. Eu não vejo como loucura, eu vejo como aquilo… não tem nome para uma mãe que perde um filho. É um lugar tão absurdo, não tem forma, não tem lugar, não tem. Então, acho que ela sublimou, foi a maneira como ela estava conseguindo ali no começo realizar, de alguma maneira, essa tragédia, esse luto. E isso é saudável, porque senão ela se mata, não tem jeito. É esse acolhimento que o filme te dá, ele te acolhe, a gente vai para vários lugares. Isso é saudável – deixa o outro sentir. Às vezes, a pessoa pede e o outro fala “para de chorar, engole esse choro!” Não, cara, na maior parte, é resolver problemas difíceis, sim.
Aianne: Bela, você interpreta uma personagem 10 anos mais nova que você, certo? Como foi retornar para essa intensidade da adolescência?
Bela: A gente rodou o filme em 2020. Isso é um dado muito curioso e interessante, porque uma semana depois que a gente chegou em casa, instaurou-se a pandemia. E eu acredito que esse filme ficou muito mais potente depois da pandemia, e da gente ter atravessado tudo o que a gente já atravessou, e da gente ter adoecido e curado tudo o que a gente curou depois desses quatro anos.
Então, sim, é uma personagem muito intensa, onde eu pude beber na fonte da minha própria adolescência, de casos muito próximos que aconteceram comigo, de vivências pessoais, para compor esse personagem. E com a condução da Carol, que foi majestosa e generosa em acessar esses buracos, essas dores nossas, pessoais, de uma forma tão profissional e respeitosa. A gente, o tempo todo, contou com uma equipe de psicólogos, de psicanalistas, de psiquiatras, que ajudaram a gente a conduzir da forma mais realista possível, para que esses personagens fossem humanos, reais, frágeis, falhos.
E que é isso, né? Os adolescentes, eles estão nessa viagem, nessa jornada catártica, querendo sentir, querendo o “oh meu Deus!”, querendo descobrir coisas, se surpreender, e ao mesmo tempo cometem atitudes que são muitas vezes cruéis. Quem já não passou por períodos e situações extremamente cruéis na adolescência? E foi isso que a gente quis retratar. O quanto eles são múltiplos, o quanto eles são faltantes, o quanto eles podem se machucar, se ferir, se humilhar, se curar e se potencializar juntos. Então, a Virginia é essa montanha russa, é esse calendoscópio de uma pessoa que sente muito e que não consegue dar vazão a tudo que ela sente, não encontra o suporte no outro, não encontra o olhar do outro, não consegue se comunicar. E eu acho que o filme se propõe a isso, através dessa jornada imagética, poética, a conversar com os adolescentes e também com os pais que convivem com os filhos que não conseguem sair desse casulo e mostrar o quanto eles estão vivendo momentos difíceis.
Aianne: Ano passado, pela primeira vez, o número de crianças e adolescentes com ansiedade e depressão, passou o número de adultos aqui no Brasil – o que é um dado que dialoga bastante com o filme. Como vocês acham que Meu Casulo de Drywall acrescenta para o debate sobre esse tema?
Daniel: Uma coisa que tenho ouvido muito na faculdade – e é louco é um processo complexo – mas existe também uma hiper patologização das criança, que pode levar
ao de desenvolver uma patologia de fato. O que a gente tem falado na faculdade é de o olhar nunca ser para o ambiente, e sim para o indivíduo, como se o ambiente fosse completamente propício para desenvolvimento de vida, como se o formato que a gente tem
de educação hoje fosse completamente nosso contexto de mundo. E aí é a criança que tem “transtorno opositor desafiador”.
Mari: eu acho que o filme é um convite a entender que existem outras alternativas que não são trágicas. É inquestionável. Adorei mesmo essa coisa da avaliação do indivíduo e não só do ambiente, porque faz todo sentido. Realmente nunca se foi tão complicado crescer mesmo, enquanto o Brasil, pandemia e um monte de coisa que mudou desde que a gente fez o filme. Mas o filme é um convite a repensar as relações, a repensar aquilo que te compõe, a repensar os seus comportamentos e os seus limites e mostrar outras alternativas que não sejam tão trágicas quanto a da Virgínia. A gente tem que acreditar, tem que jogar lá em cima.
Michel: A Anna Muylaert, cineasta, fala que todo filme é uma cura. Você vê aquelas emoções que acontecem com o personagem, colocado naquela circunstância, você sente aquela emoção, e o que é um problema, às vezes, inconsciente, torna consciente para você. Então, de certa forma, é uma cura.
Acho que o nosso filme tem essa temática, esse potencial –não de curar a pessoa, acho que seria muita pretensão – mas de trazer a consciência e falar que isso existe, a gente precisa falar, e se não for falado, o caminho é meio que esse trágico da Virgínia.
Então, jogar para cima e falar, principalmente aos pais: vejam isso, porque esses personagens desse filme não são assim por causa deles, e sim pelo ambiente em que eles estão, pelos pais.
Aianne: Carol fala muito sobre como o filme se relaciona com ela no nível pessoal, especialmente na adolescência dela. Vocês sentem que o personagem que vocês interpretaram conseguiu atingir também individualmente com a história de cada um?
Daniel: Para mim, sim e não, porque o Gabriel acabou que caiu em emboscadas violentas, vamos colocar assim. Ele acabou tendo essas armadilhas violentas e fáceis para essa exclusão dele. Eu não tive isso, mas tive a exclusão. Eu, Daniel, particularmente, sempre fui uma criança muito ingênua, muito pacífica, muito cristã, do tipo, o moleque me zoava e eu tinha que dar outra face, então ele meio que me zoava e eu comprava picolé para ele. Mas acabava que eu peguei esse lugar do isolado, do não compreendido, e tive que entender esse aspecto do possível violento.
Mari: Para mim, se relaciona quase totalmente, me emprestei muito das minhas experiências de despertencimento, de hipersexualização desde muito nova, de adultização dessa menina, de ter que ser responsável desde tão cedo pela ausência do pai e pela ausência presente da mãe, com a questão da depressão dela. É uma experiência, acredito, quase universal de mulheres negras no Brasil, especialmente a questão da responsabilidade.
Assim que li [o roteiro], fiquei muito impactada dosando também o quanto eu emprestaria, entendendo o quanto eu poderia me abrir nesse processo. Mas, depois que a gente entendeu que estava todo mundo imerso, a gente mergulhou de cabeça nessas questões que já estavam pautadas. Os personagens já tinham as suas questões escritas, mas acho que eles ganharam muito quando a gente se emprestou um pouquinho também, eu na minha experiência, o Daniel na experiência de estranheza que ele falou da adolescência dele… Acho que eles ficam menos chapados nesse sentido, ficam mais profundos, mais relacionáveis, e acho que isso imprime muito.
Michel: Engraçado. Tenho links com o Nicolas, mas me sinto muito distante. Acho que justamente por isso foi fascinante fazer ele, esse exercício de se colocar na pele.
Os links que eu tenho são de esporte, eu era um adolescente que tinha muita insegurança, e que não parecia, mas tinha. E o Nicolas tem, num lugar diferente, mas tem.
Para mim, foi fascinante me colocar na pele dele, viver esse adolescente que não tem os pilares principais de afeto e segurança social, que são os pais, que são completamente ruídos, que não aceitam quem ele é, que ele não é visto, não é escutado, não consegue ser quem ele é.
Começar a imaginar como seria esse ser, quais são os sonhos, o que ele sente em relação aos pais, qual é a carência que a Virgínia preenche nele, a Luana, o Gabriel… Como é que ele se enxerga, como é que foi a infância, o que ele vai ser para o futuro. Até que, conversando com a Carol na sua imagem, a gente chegou a uma conclusão: o Nicolas tem dois caminhos de futuro, que eu consigo enxergar, e que são extremos. Um, ser como o pai é, virar um pai rígido, um político de direita, completamente recalcado, reacionário. Ou vai quebrar esse casulo de drywall dele e descobrir e realmente ser quem ele é, e talvez ser um super artista performático. Acho que ele tem essa capacidade, ele tem esse potencial dentro dele, você vê que ele tem uma sensibilidade – é tóxica, mas ele usa essa sensibilidade que ele tem, porque ele precisou crescer lendo os pais, vendo quando ele ia ser extremamente reprimido. Ele podia usar essa sensibilidade para outro lugar.
E hoje a gente tem muitas figuras públicas que são meio Nicolas, né? Na época [das gravações] a gente não tinha tanto, mas hoje a gente tem muitos caras jovens na política que são idênticos, claramente.
Mari: Inclusive que se chamam Nicolas! [risos]
Aianne: Vi no portfólio de vocês já muitos filmes e muitos créditos. Como tem sido crescer nesses últimos anos no audiovisual nacional?
Daniel: É uma escola, né? É uma escola. E é a oportunidade de trazer um pouco realidades daqui para cá.
Michel: Eu acho que quanto mais antropofágico, quanto mais a gente contar as nossas próprias histórias, mais colocar as pessoas que realmente são o Brasil na tela, mais representatividade a gente vai ter. E voltando para a pergunta anterior, acho que menos políticos recalcados, que não foram representados, que não tiveram nada que mostrasse para eles: “olha, isso existe, pode haver uma cura, cura no sentido de você com você mesmo, das suas emoções, de você pode ser quem você é, cura dessa saúde mental, desse recalque” acho que a gente estaria em uma sociedade andando muito mais sensivelmente para frente de verdade. E acho que o audiovisual tem essa potência.
Mari: Como atriz, toda vez que o cinema me escolhe, eu fico honrada. Porque é realmente um lugar de paixão muito grande para mim.
Como espectador, é uma coisa que eu estava refletindo essa semana, que me parece um momento muito próspero para fazer e consumir cinema nacional. Porque em tempos de internet, de edit, TikTok, coisas que a gente tinha pavor de afastar o espectador do cinema, tem acontecido justamente o efeito contrário. Eu sou super otimista nesse sentido, mas é real. Eu vejo o quanto o acesso a essas redes e a esse tipo de conteúdo tem levado o cinema brasileiro para mais jovens.
Esses dias, a minha irmã veio me perguntar se eu já vi Madame Satã como se fosse um lançamento de mês passado. E eu falei “óbvio que já!”, fiquei até meio ofendida (risos), mas daí eu falei, “como esse filme chegou em você?” E ela disse, eu vi um edit lindo no TikTok e isso fez ela ir atrás do filme. E muitas pessoas vão atrás dos filmes por conta disso.
Então, eu acho que a gente está num momento lindo de ter mais acessibilidade mesmo aos filmes e eles parecerem mais alcançáveis. Tem muitas pessoas fazendo trabalhos incríveis também para popularizar o cinema nacional. Tem um menino, que eu não vou lembrar o nome dele agora, mas ele faz um quadro, tipo, “tem um filme nacional para isso”. Se você gosta de um filme, aí começa a descrever um filme que, tipo, claramente seria, sei lá, um Hitchcock. Aí ele fala “existe filme tal que vai te atender”. Em todas essas categorias, em tudo que você quer assistir nesse sentido, existe um filme brasileiro para isso. Olha como esse cara está conseguindo popularizar, levar, democratizar e também desmistificar! Que é o mais importante, que a gente tenha essa noção de que filme brasileiro ele é cabeça, ele é cult, e às vezes ele é mesmo, mas hoje tem se feito cada vez mais os filmes mais populares, mais palatáveis. Eu me orgulho muito.
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