Uma conversa sobre luto, melancolia e cinema independente
Foto: Divulgação
Quem já vivenciou momentos no campus em alguma universidade federal do Brasil sabe o quanto o campus é responsável por despertar sentimentos melancólicos, além de projetar nossas inúmeras incertezas da juventude. Os prédios e paisagens se misturam, como um universo particular que ao mesmo tempo que nos acolhe parece isolar do mundo que está fora dali.
Em Sofia, Foi, a USP é retratada como um personagem que irá aflorar os mais puros sentimentos da protagonista.
Sinopse: Sofia, forçada a sair do apartamento em que vivia, fica à deriva nos espaços da Universidade de São Paulo. Sem ter para onde voltar, ela passa por encontros e memórias nesse dia determinante em sua vida.
Premiada como melhor obra de estreia no Festival Internacional de Cinema de Marselha (FID Marseille) em 2023, Sofia Foi tem estreia marcada nos cinemas brasileiros para o dia 19 de setembro deste ano.
O Oxente, Pipoca? teve o prazer de conversar com diretore Pedro Geraldo, e a atriz Sofia Tomic, na entrevista exclusiva abaixo.
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Caio: Eu queria saber de onde surgiu a ideia de adotar essa narrativa que se passa entre vivências da universidade e utiliza a USP como cenário, em situações que parecem tão simuladas quanto vivenciadas. De certa forma, a narrativa mistura a linguagem documental com a linguagem ficcional. Em alguns momentos, o espectador não consegue diferenciar as duas de tão potente que as situações se tornam. Apesar de algumas situações narrativas não serem explicitamente expostas, você consegue acreditar nelas ou não. Acho que isso desperta uma certa melancolia e uma estranheza bem interessante e particular. Então, gostaria de saber de onde surgiu a ideia de misturar o documental com o ficcional.
Pedro: Acho que há dois pontos de partida. O primeiro seria as notícias de eventos trágicos que aconteceram dentro do campus da USP, em que jovens estudantes perderam a vida, geralmente de maneira misteriosa e não explicada. Isso sempre mexeu comigo, porque acho que era o fato de não haver uma explicação, sabe? Eu queria muito entender o que tinha acontecido, quais foram os últimos momentos de vida dessas pessoas, o que elas viram, quem eram as pessoas que as viram. Então, havia esse meu interesse em refletir sobre esses últimos momentos e também sobre a universidade como o espaço onde isso ocorreu. Acho que sempre foi muito forte, sabe? É um espaço onde depositamos muita expectativa, e faz parte de um momento de crescimento pessoal, amadurecimento e, talvez, perda da inocência. Então, eu queria muito que esse filme se passasse na universidade, porque é o espaço onde essas coisas estão mais intensificadas.
E aí eu conversei com a Sofia, que é o outro ponto de partida do filme. Conheço a Sofia há dez anos e sempre me marcou muito a sua presença, a forma como ela usa a voz, e até mesmo o quanto ela esconde e mostra através do rosto, da expressão facial. Também havia algumas questões autobiográficas da Sofia, relacionadas a um momento específico que era interessante trazer para a narrativa; acho que depois ela pode falar mais sobre esse processo de trazer a própria vida para o filme. Mas começamos com um registro documental. Como não escrevemos um roteiro delimitado, fomos criando as cenas a partir do que havia na universidade, das coisas que estavam acontecendo e das amizades da Sofia. Assim, o filme está o tempo todo entre os dois mundos: o documental e o ficcional. Acho que havia um desejo muito forte de fazer ficção, e esse foi o caminho que o filme percorreu. Ele começa como um documentário e segue por um caminho de ficção.
Sofia: Pedro me fez o convite e começamos a desenvolver a ideia do filme. Sabíamos que seria na USP devido a um recorte que Pedro trouxe e que duraria um dia. Então, esse roteiro nunca chegou a ser formalizado como um roteiro clássico; era uma lista de caminhos que o personagem percorreria ao longo da noite e do dia.
Ainda estava em questão se seria o último dia de vida dessa personagem ou se outro personagem perderia a vida e Sofia encontraria esse personagem no meio do caminho. Tivemos bastante tempo para desenvolver isso ao longo do processo. Ficamos um mês com uma câmera e gravamos por 13 dias. Durante todo esse tempo em que tivemos o equipamento disponível, gravávamos um dia e depois parávamos, assistíamos ao material e recalculávamos a rota. Todas as cenas realmente eram apenas uma lista; tudo que aconteceu de interação foi imprevisível e improvisado. De fato, precisávamos desse tempo para assimilar o que havia sido gravado e entender se entregávamos o que havíamos imaginado. A primeira cena que gravamos foi a da tatuagem, que é uma interação que leva tempo. Foi um bom dia também para Pedro entender a distância da câmera em relação ao personagem, tratando-se de uma ação que flui na frente da câmera sem precisar parar e cortar a ação. Foi uma maneira de, com pouca estrutura, conseguir tempo e espaço para desenvolver uma linguagem tanto para mim, enquanto atriz, quanto para Pedro, como diretore e fotógrafo.
Caio: Inclusive, Pedro falou sobre a questão de ter te convidado, e eu queria entender como se deu essa transposição para a atuação e o improviso. O filme tem muito do "não visto", como a ideia do extracampo que às vezes transparece muito no olhar da Sofia e na forma como ela reage ao que está ao redor dela. Então, gostaria que você falasse um pouco sobre como surgiu essa ideia.
Sofia: Eu acho que há um interesse pelo que não é visto, pelo que não é dito e pelo que não é mostrado e resolvido em cena. Há uma coisa que compartilhamos, e que Pedro, enquanto diretore, trouxe muito ao longo do processo. Muitas das indicações de atuação eram sobre olhar para um lugar sabendo que isso não seria visto, sobre a minha personagem ver coisas que o público não veria. Fizemos uma entrevista com Maeve Jinkings e discutimos sobre atuação, e fiquei refletindo sobre o que falei com ela, porque o fato de ter nascido como documentário, a princípio, já definiu um personagem. Então, de alguma maneira, estou trabalhando comigo mesma. Ao mesmo tempo, a escolha pelo caminho da ficção teve impacto, por exemplo, na escolha do figurino, que tem uma influência muito forte de anime, uma roupa que é até mais marcante do que o rosto e o corpo da personagem.
Caio: Eu observei que você está creditada na direção de arte.
Sofia: A direção de arte envolveu mais a escolha de figurino e a produção de locação. Eu estudava na USP, enquanto Pedro não havia estudado lá. Havia o interesse de Pedro pelo espaço, mas eu conhecia bem aquele lugar. Desde que o convite foi feito, foi muito sobre explorar aquele espaço e apresentar possibilidades de locações para as cenas e ações que estávamos desenvolvendo. E o restante foi deixar a própria USP trabalhar para a gente.
Pedro: Eu acho que, para mim, que não estudava lá e ia visitar frequentemente para festas ou para ver amizades que estudavam na USP, o espaço me chamava muito a atenção exatamente por não ser um lugar comum no meu dia a dia. Havia uma estranheza daquele espaço que, na hora de filmar, foi fácil transpor para o filme. Sinto que, diferente dos campi de universidades particulares, a USP e outras universidades federais que frequentei têm uma dimensão muito extensa, o que permite vagar e se perder no campus. Além disso, há uma presença muito forte da natureza em contraposição aos prédios e à arquitetura daquele espaço. Isso também era muito interessante porque, na época, a Sofia estudava arquitetura. Começamos o filme pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, então era interessante também contrabalançar os momentos de dureza e de uma arquitetura muito imponente, até um pouco agressiva, com momentos de maior presença da natureza, com uma leveza e fluidez maiores. Em relação às elipses e à escolha de não mostrar tudo, e como o filme se baseia em um acontecimento que não teve explicação, eu não tinha a intenção de explicar.
Acho que era mais sobre observar e tentar lidar com esses buracos e vazios na narrativa.
Caio: Por se tratar de um filme independente, quais foram os desafios iniciais para a produção?
Pedro: A parte da filmagem foi muito entre mim e Sofia. Eu tinha saído da universidade havia 3 anos e, fora da universidade, sempre trabalhei como diretore de fotografia, sempre com uma estrutura um pouco mais complexa. Não diria grande, mas na faculdade você tem assistentes e uma hierarquia de funções. Eu estava meio cansado disso e queria encontrar um processo mais tranquilo, que nos permitisse mais tempo para descobrir o filme. Queríamos encontrar o filme enquanto o fazíamos, e por isso assistíamos ao material depois de filmar, conversávamos sobre ele, o que permitia um filme muito íntimo, tanto entre Sofia, quanto entre mim e os outros atores. Mas também sentia que não era o momento adequado e, como não tínhamos orçamento, não me sentia confortável em chamar amigos para trabalhar conosco. Então, pensei: "acho que podemos fazer isso nós dues". A gente tinha um tripé, uma câmera e um boom. Eu operava a câmera e o boom, e quando a Sofia não estava em cena, ela operava o boom. Foi muito interessante esse processo. Acredito que encontramos muitas coisas nesse caminho, embora houvesse muitas dificuldades. Por exemplo, eu não sou um captador de som, nem a Sofia, então o som direto teve que ser muito melhorado na pós-produção. Além disso, tivemos que encontrar dinheiro para finalizar o filme, o que também é uma etapa muito custosa
Sofia: Não teve apoio antes, a gente não foi validado por instituições.
Pedro: Porque como você escreve um projeto que não tem um roteiro, em que você vai encontrar o filme enquanto o faz, para inscrever em um edital público? É muito difícil. Eles pedem algo totalmente formatado, que não deixa muito espaço para o acaso ou para criações no momento. Ter apenas um ponto de partida não é suficiente. Foi um desafio. Filmamos em 2018 e demoramos 5 anos para finalizar, devido à pandemia e ao fato de que as pessoas que tentaram montar o filme no começo não conseguiram seguir em frente. Foi um processo muito lento na montagem. Mas, enfim, conseguimos, e o filme vai estrear comercialmente, algo que nem imaginávamos.
Sofia: A gente fica falando sobre isso. Acho que é óbvio que a ambição e o desejo eram coisas que tínhamos desde 2018, mas, de fato, chegar agora ao cinema comercial é absurdo. De fato, somos um dos menores filmes que estrearam comercialmente no Brasil. O filme custou muito pouco, e é claro que isso também tem a ver com o envolvimento muito pessoal, não só nosso, mas também das pessoas da equipe que se juntaram depois. É muito incrível.
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