Entrevista | Lírio Ferreira fala sobre "Serra das Almas", memória, cinema e resistência
- Gabriella Ferreira
- há 17 horas
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Diretor pernambucano conversou com o Oxente Pipoca sobre seu novo longa, que chega aos cinemas em 24 de abril.

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Responsável por longas que moldaram o cinema brasileiro, em especial o pernambucano, o cineasta Lírio Ferreira retorna às telas de cinema com Serra das Almas neste 24 de abril. Na trama, uma cidade no interior de Pernambuco é cenário de ação, drama e terror, acompanhando uma emboscada completa que envolve bandidos, uma investigação jornalística e políticos corruptos.
O plano de roubar um conjunto de joias, porém, leva esse grupo a uma sequência de situações inusitadas e catastróficas. Ao contrário do ditado popular, entre mortos e feridos, nem todos irão se salvar. Neste thriller com toques de humor, uma aventura se desdobra aos poucos para o espectador enquanto seus personagens confrontam seus passados. Um golpe e um sequestro, então, prendem numa mesma casa duas jornalistas (Julia Stockler e Pally Siqueira), um casal (Jorge Neto e Mari Oliveira), dois ladrões (Ravel Andrade e David Santos) e um desconhecido envolvido por acaso (Vertin Moura), obrigando-os a enfrentar o tempo e a si mesmos.
Em uma conversa com o Oxente Pipoca, Lírio traçou paralelos entre a história do filme e o momento em que vivemos como sociedade, seus outros trabalhos e a importância do cinema como ferramenta de transformação. Confira a entrevista na íntegra:
Gabriella Ferreira (Oxente Pipoca): Você descreveu Serra das Almas como um filme que carrega uma “esperança desajustada” do tempo pós-pandemia. Que tipo de esperança é essa? Como ela se manifesta dentro de um universo tão marcado pela violência e pelo caos?
Lírio Ferreira: Eu não sei se tem um tipo de esperança, sabe? Eu acho que o final do filme traz uma certa esperança. Não sei exatamente que tipo de esperança.
Eu acho que o horizonte continua nublado, tenebroso. As armações são constantes. Acho que tudo está muito complicado. Eu não sei que tipo de esperança é essa, mas eu acho que existe uma certa esperança no final, por conta do momento que a gente estava passando. É um filme de três anos atrás. É um filme que, quando a gente filmou, teve a passagem de uma eleição, e eu acho que isso, pelo resultado, traz um pouco de esperança — mas, de novo, eu não sei que tipo de esperança é essa.
Agora, obviamente, é um filme que conversa com a pandemia. É um filme que se passa entre quatro paredes. É um filme em que as janelas estão ali, mas estão gradeadas. Tem uma paisagem do lado de fora que convida a sair, mas os personagens, de alguma maneira, não saem — como acontecia na pandemia.
E aí a gente tenta entender essas coisas, do tempo, da natureza... e refletir sobre isso. E até pra que essas coisas — essa destruição, essa amargura, esse ódio — não voltem a acontecer.
É difícil... difícil. Esperança, a gente tem. Qual? Não sei.
Gabriella Ferreira (Oxente Pipoca): Você falou que todo filme é um retrato do seu tempo. Como você enxerga a função do cinema brasileiro hoje, especialmente diante do momento político que vivemos nos últimos anos?
Lírio Ferreira: É uma coisa de resistência. Sempre foi, né? Agora, o cinema político — principalmente com os filmes que tiveram, né? — teve uma safra maravilhosa. O filme do Valtinho, do Walter Salles, que pegou ali seis milhões de espectadores e fez uma carreira gloriosa internacionalmente. O filme Malu.
Eu acho que é uma característica do cinema brasileiro. Tá se retomando, tá se falando sobre isso. O cinema sempre foi uma ferramenta pra isso. Na época do Cinema Novo, nossos mestres falavam do Brasil — e, quando não falavam diretamente, falavam por metáforas.
E é muito importante que o cinema exerça isso. Que os cineastas exerçam essa ferramenta, que acessem o cinema como um elemento transformador. Porque, volto a dizer: nada tá garantido.
O mal, o ódio, as pessoas perversas — as almas sebosas — nos vigiam. E, a qualquer descuido, elas tendem a voltar, a sair dos seus lugares sórdidos.
Então a gente tem que estar atento. O cinema é uma ferramenta pra proteger a gente. E, se não proteger, que sirva pelo menos pra refletir. Pra mostrar que esse não é um caminho. Que é um caminho que já foi pisado — e que não tem por que voltar.
Gabriella Ferreira (Oxente Pipoca): O filme tem ecos de western, cinema noir, nouvelle vague e do nosso próprio cinema novo. Como você costura essas referências tão distintas sem perder a sua assinatura?
Lírio Ferreira: Com a mão. Eu costuro com a mão. Não tem mais máquina de costurar. Você pega e sai costurando.
Eu ficava olhando pra minha avó, como ela costurava assim... Não é brincadeira. Dá pra ir, mas não é simples. É um cinema muito, muito manual. Muito amador, muito doméstico e, mais do que tudo, carregado de afeto. De respeito. Respeito pelo outro, por quem está assistindo.
A maneira como o Serra das Almas foi construído permite isso. Permite conversar, buscar referências... do cinema americano dos anos 70, do western, do John Ford, do thriller...
Acho que essa coisa do terror no cinema brasileiro hoje também tá presente. O filme se permitiu isso. Teve essa possibilidade da gente brincar seriamente com esses elementos.
Mas sempre costurando à mão. Acho que é com a mão mesmo que a gente faz o melhor cinema.
Gabriella Ferreira (Oxente Pipoca): Parabéns pela vitória de Serra das Almas no Prêmio Netflix da 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo! Com isso, o filme será exibido em mais de 170 países, ampliando significativamente o alcance do cinema brasileiro. Gostaria de saber como você enxerga o impacto dessa distribuição global para o cinema autoral brasileiro, especialmente para obras que emergem de contextos regionais como o nordeste? Essa visibilidade internacional pode influenciar a forma como futuras produções são concebidas e realizadas?
Lírio Ferreira: É fantástico. Eu acho que a casa do filme... no meu caso, é o cinema. É a sala de cinema. Eu me formo bem na sala de cinema. Tenho uma relação, uma dependência física mesmo com a sala de cinema. Eu preciso respirar aquela atmosfera. É algo que me fez muita falta na pandemia, inclusive.
Mas, assim, as possibilidades que a tecnologia, que os streamings e as novas janelas proporcionam hoje... é fantástico. O filme tem a chance de ser exibido em quase 190 países, em várias línguas, e conversar com povos do outro lado do mundo. Levar esse filme, que foi feito ali no Agreste de Pernambuco, pra ser exibido em Melbourne, por exemplo. Eu sempre cito Melbourne, acho que Melbourne é o grande espelho do meu cinema. Aquele "terra é lugar de mala sombra", sabe?
Eu acho isso realmente fantástico. Essas infinitas possibilidades, essas infinitas janelas. É um ganho muito, muito bacana. Acho que o cinema é essa maneira de levar sua aldeia, levar sua ideia para o mundo inteiro.
E aí o resto... agora é trabalho dos tradutores, vai ter legenda pra caramba, mas, tirando isso, vai ser muito bacana. Vai ser muito bom.

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Gabriella Ferreira (Oxente Pipoca): Lírio, você é um dos responsáveis por um dos filmes que marcou a minha vida. Baile Perfumado é um dos longas favoritos do meu pai (e meu também) e eu já assisti inúmeras vezes. Ele é um longa que marca a retomada do cinema pernambucano, sendo extremamente importante para todo o contexto histórico do próprio cinema brasileiro. Recentemente, Corisco & Dadá, também de 1996, foi remasterizado em 4k e relançado nos cinemas. Será que em breve podemos ter ‘Baile Perfumado’ de volta às telonas?
Lírio Ferreira: No ano que vem vão fazer 30 anos do Baile Perfumado. O filme já teve uma, uma atualização em 2K, ali quando ele fez 20 anos, mas a gente tem vontade de passar ele pra 4K também, relançar no cinema.
Em paralelo a isso, está se construindo em Recife um documentário para celebrar a efeméride dos 30 anos, dirigido por Camilo Cavalcanti, e procurar contar um pouco dessa história, né? A história desse filme que marcou uma época. Uma época em que não existia faculdade de cinema em Pernambuco, e o Baile também foi uma universidade pra gente. Imagina que num filme que eu trabalhei, trabalharam Paulo Caldas, Gilton Lacerda, Adelina Pontual, Cláudio Assis, Marcelo Gomes, Pido Queiroz... Muita gente passou pelo Baile, se formou no Baile.
E teve a importância de conversar com o Manguebeat naquela época, de marcar. E eu fico muito feliz que marcou a geração de muita gente. Muita gente começou a fazer cinema por conta disso, se interessar por cinema por conta disso, e ter orgulho do cinema de Pernambuco voltar, a fazer parte da cinematografia, da geografia do cinema brasileiro.
Então é isso. O ano que vem a gente pensa em lançar o filme, e em 2027 possivelmente vai ter esse documentário celebrando a efeméride dos 30 anos: O Perfume do Baile.
Gabriella Ferreira (Oxente Pipoca): Aqui no Oxente Pipoca, a gente sempre encerra com uma pergunta que é tradição da casa: qual é um filme brasileiro — de qualquer época — que te atravessou de forma especial e que você gostaria de compartilhar conosco? Pode ser um clássico, uma joia esquecida ou algo que te inspira até hoje.
Lírio Ferreira: Nossa, são tantos filmes... é muito difícil essa pergunta. Mas eu vou com o a primeira coisa que me veio na cabeça: A Lira do Delírio, do Walter Lima Júnior. É um filme maravilhoso. Um filme que mexe com o tempo de uma maneira absurda.
Foi filmado em 1972, mas só foi finalizado em 1977. É sobre carnaval, tem várias camadas, várias etapas. O tempo também age sobre ele — a ideia do Valtinho, ali no começo, era fazer um determinado tipo de filme, mas o tempo de feitura foi modificando tudo, até virar um thriller.
É um filme que eu carrego com muito carinho, entre tantos outros do cinema brasileiro. Mas o que me vem na cabeça agora é esse: A Lira do Delírio, do Walter Lima Júnior.
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