Os perigos da romantização do passado
Foto: divulgação
“Nostalgia. É delicada, mas potente”, disse o personagem Don Draper em um episódio de Mad Men. A essas características o diretor italiano Mario Martone acrescenta sua própria interpretação da nostalgia: ela também pode ser enganadora e perigosa. O passado de fato existe, afinal de contas? E somos capazes de acessá-lo em sua plenitude sem cair nas armadilhas de uma memória que pode vir a romantizá-lo e aparar suas arestas?
Em Nostalgia, conhecemos nosso protagonista (vivido por Pierfrancesco Favino) em seu voo para Nápoles, e então o acompanhamos pelas ruas da cidade. Pouco sabemos sobre ele e quase nada é dito nos minutos iniciais, de modo que cabe ao poder das imagens e da atuação nuançada de Favino para entendermos os sentimentos conflitantes que borbulham nesse homem, indicando que talvez faça muito tempo desde a última vez em que ele esteve na cidade. É só quando ele reencontra sua adoentada mãe Teresa (Aurora Quattrocchi) que o filme aos poucos se abre para explanar suas intenções acerca do retorno do protagonista à cidade.
Logo aprendemos que ele, chamado Felisce, não voltou à Nápoles apenas para cuidar da mãe em seus últimos dias, mas para se reconectar com o passado e até prestar contas onde é devido. Através de um filtro que emula as câmeras Super 8, vemos a versão jovem do protagonista em suas aventuras impetuosas ao lado do melhor amigo Oreste. No presente, porém, Oreste (Tommaso Ragno) é um perigoso chefe local da Camorra, a máfia napolitana, cujo maior nêmesis é o padre Luigi (Francesco Di Leva), e a aproximação deste com Felisce coloca o protagonista num dilema moral.
Assim, o que poderia ser o comovente drama de um filho e sua mãe aos poucos se aproxima de um thriller criminal, onde Martone evoca a todo instante a paranoia, através das figuras que constantemente olham para Felisce de suas janelas, terraços ou ruas, que nos fazem ver que ele não é desejado ali, mesmo que sinta dentro de si o desejo pela cidade que não via há tanto tempo. Porém, o diretor se distancia de outras obras que abordem o submundo do crime napolitano para filtrar tal universo através desse olhar íntimo (e ingênuo) do personagem, e a capacidade de Favino de expressar um sentimento tão difícil de ser traduzido quanto a nostalgia — e o preço que paga por ela — é a grande arma secreta do filme.
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Outro acerto é a performance de Di Leva, que injeta uma força e astúcia notáveis em seu personagem, conforme ele passa a usar Felisce como uma forma de derrubar Oreste, sem, no entanto, perdermos de vista a sua humanidade. Infelizmente, Ragno não dispõe do mesmo espaço que os outros dois; mesmo conferindo uma latitude dramática ao seu personagem, a forma como o filme o trabalha o faz parecer mais um conceito (como um espelho distorcido de Felisce) do que um ser humano palpável.
Essa subutilização de Oreste — bem como um final que parece telegrafado à distância, mesmo que isso não nos prive de uma tensão sufocante no terceiro ato — minam um pouco da força de Nostalgia, mas não desqualificam o filme, que oferece um olhar corajoso e diferenciado não apenas para o tema e a cidade que retrata. Nas mãos de Martone e, sobretudo, na escalação de Favino e Di Leva (e também de Quattrochi, que entrega muito em tão pouco tempo), o filme eficazmente se ancora para nos deixar claro que nem sempre é benéfico se deixar seduzir pelo passado.
Nota: 4/5
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